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Na tarde desta quarta (28/2), termina no Supremo Tribunal Federal (STF) o mais importante julgamento sobre meio ambiente da história do país. A corte vai finalizar a análise das quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), propostas pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e o PSOL, contra a Lei de Proteção da Vegetação Nativa (12.651/2012), que revogou o Código Florestal de 1965. Falta apenas o ministro Celso de Mello votar.
O caso chegará ao fim pelo menos em sua etapa mais importante, já que não está descartada a apresentação de recursos de embargos de declaração. Neste caso, haveria um novo julgamento apenas para esclarecer alguns pontos da decisão final.
Na semana passada, votaram nove ministros. O julgamento começou em setembro, quando o ministro Luiz Fux leu seu relatório. Em novembro, deu seu voto.
O ISA fez parte do processo na qualidade de “amicus curiae”, o que permitiu apresentar petições e memoriais aos ministros, participar de uma audiência pública e fazer uma sustentação oral no plenário do STF, em setembro. A organização defendeu a inconstitucionalidade dos mais de 40 pontos questionados pelas ADIs.
A lei define o que tem de ser preservado e reflorestado em parte das cidades e nos cerca de 5,5 milhões de imóveis rurais do Brasil, que somam 490 milhões de hectares ou 58% do território nacional. O julgamento ganha ainda mais relevância em virtude do aumento dos extremos climáticos no país, nos últimos anos, a exemplo da crise hídrica em São Paulo e DF. A vegetação nativa é fundamental para a regulação do clima, a garantia do abastecimento de água e da geração de energia(saiba mais aqui e no box ao final da reportagem).
A contagem dos votos dos ministros segue empatada em alguns pontos importantes, que serão definidos por Mello, o decano da corte. Por isso, seu voto ganha importância. Outro conjunto de questões fundamentais já foi decidido, o que traz boas e más notícias para o meio ambiente, a sustentabilidade da agropecuária e de toda sociedade brasileira.
Entenda abaixo o que ainda está em jogo e o que já está definido nesse julgamento histórico e as principais consequências práticas de cada decisão do STF
Anistia
A lei conferiu dois tipos principais de anistias: a multas e outras sanções por desmatamentos ilegais cometidos antes de 22 de julho de 2008; e à obrigação de reflorestar áreas desmatadas ilegalmente também antes dessa data. A votação sobre o primeiro ponto ainda está empatada e o resultado final segue em aberto. Quanto ao segundo ponto, o voto de Celso de Mello irá decidir apenas se as áreas de Reserva Legal desmatadas irregularmente antes dessa data devem ou não ser reflorestadas.
A anistia é considerada um dos maiores retrocessos da nova lei. Ela beneficia quem desmatou ilegalmente, estimulando a impunidade, e é injusto com os produtores rurais que cumpriram a norma antiga, por colocá-los em desvantagem, obrigando-os hoje a proteger a vegetação segundo os padrões mais rigorosos de antes de 2012. Ao final, quem cumpriu a legislação, teria menos área disponível para produção do que aquele que desmatou ilegalmente. O perdão também estimula a expectativa por novas anistias, o que pode incentivar mais mudanças na lei contra o meio ambiente.
Compensação de RL no mesmo bioma
A lei antiga definia que os produtores rurais poderiam adquirir terras para “compensar” áreas de Reserva Legal (RL) desmatadas ilegalmente. Essas terras deveriam estar próximas do desmatamento original (na mesma microbacia) com o objetivo de reparar o dano ambiental causado. A nova lei diz que essa “compensação” pode ser feita “no mesmo bioma”, o que, na prática, permite compensar áreas a milhares de quilômetros do desmatamento original e inviabiliza a reparação do dano.
Redução de RL de 80% para 50%
Na Amazônia, a nova lei permite reduzir a RL do imóvel, para fins de reflorestamento, de 80% para 50% se o município onde ele está for ocupado por mais de 50% de Terras Indígenas (TIs) homologadas e Unidades de Conservação (UCs) públicas. Se o Estado tiver mais de 65% de sua extensão ocupada por essas áreas protegidas, a área da RL também pode ser reduzida, mas não apenas para fins de recomposição, ou seja, se a RL alcançar 80% do imóvel estiver intacta, é possível desmatá-la até que a área chegue a 50% do imóvel. Isso pode permitir que vastas áreas de mata nativa deixem de ser preservadas, comprometendo serviços ambientais como regulação do clima local, proteção da fauna, polinização e estabilidade do solo.
Encostas com mais de 45º graus e topos de morros
A lei libera algumas atividades agrícolas, sob condições, em APPs de encostas com mais de 45º; topos de morros, montanhas e serras; bordas dos tabuleiros ou chapadas; áreas em altitude superior a 1.800 metros. Trata-se de áreas sensíveis para a estabilidade do solo. Seu desmatamento pode acarretar deslizamentos e enxurradas e contribuir para inundações. Entre 1991 e 2012, cerca de 46 milhões de pessoas foram afetadas por esses três últimos tipos de eventos no Brasil. Em torno de 3,9 milhões de pessoas ficaram desabrigadas ou desalojadas e 3,8 mil foram mortas. Os prejuízos podem ter chegado a R$ 355 bilhões.
Autorização de desmatamento em APP
A lei diz que quem desmatou ilegalmente sua APP, após 22 de julho de 2008, não tem direito de desmatar de novo antes que tenha recomposto a área desmatada originalmente. A consequência é que quem desmatou ilegalmente antes dessa data pode ser beneficiado com novas autorizações de desmate.
Permissão de atividades em RL desmatada
A lei obriga a “suspensão imediata das atividades em área de Reserva Legal desmatada irregularmente após 22 de julho de 2008”. A norma libera da obrigação de recuperar a vegetação nativa nessas áreas quem as desmatou antes dessa data.
Desmatamento de APP só quando não houver alternativa
Os ministros reforçaram que só é possível desmatar APPs por “interesse social”, “utilidade pública” ou quando houver “baixo impacto ambiental” e inexistir “alternativa técnica e locacional”, ou seja, quando não for possível fazer essa intervenção em em outro local.
APPs livres de lixo e estádios
A lei dizia que era possível desmatar APPs para viabilizar instalações de "gestão de resíduos" e atividades esportivas. Isso permitia implantar lixões, aterros sanitários, quadras de esportes, ginásios e estádios em matas de beira de rio. As consequências poderiam ser contaminação do solo e da água; erosão e assoreamento dos rios; comprometimento do abastecimento de água; enxurradas e inundações. Os ministros decidiram que essa norma é inconstitucional.
Nascentes e olhos de água intermitentes protegidos
Segundo a lei, apenas nascentes e olhos de água perenes deveriam ser protegidas por uma APP (50 metros). Isso colocava em risco a manutenção de mananciais de água e a próprias atividades agrícolas e a pecuária, em especial no Semiárido e no Cerrado. De acordo com os ministros, todas as nascentes e olhos de água, intermitentes ou permanentes, devem ser protegidas.
Tratamento diferenciado para povos indígenas e comunidades tradicionais
A lei estendeu a Terras Indígenas (TIs) “demarcadas” e áreas de comunidades tradicionais “tituladas” todos os benefícios da lei conferidos aos pequenos produtores rurais, incluindo anistias e regimes diferenciados de proteção da vegetação. De acordo com os ministros, todas as Tis, e não só as "demarcadas", e todas as áreas de comunidades tradicionais, e não apenas as "tituladas", devem ter esse tratamento privilegiado. Do ponto de vista jurídico, o entendimento é importante, pois reforça que os atos que reconhecem esses territórios são apenas declaratórios, de modo que eles existem mesmo que o Poder Público se negue a reconhecê-los.
Redução da obrigação de recuperar APPs de corpos de água
Outra parte da anistia é a que reduz a obrigação dos produtores rurais de recuperar as APPs de corpos de água desmatadas ilegalmente. Chamada de “escadinha”, a regra prevê a manutenção de APPs menores para imóveis menores, numa escala de gradação, que supostamente pretende beneficiar os produtores de menor patrimônio.
As APPs que protegem os corpos de água são fundamentais para recarga de aquíferos, controle da infiltração e vazão dos rios, evitar o assoreamento e a erosão. Daí sua importância para proteger os recursos hídricos, a estabilidade e qualidade do solo; e para evitar enxurradas e inundações. Só a crise hídrica de São Paulo teria acarretado um prejuízo em torno de US$ 5 bilhões, o quinto desastre natural mais caro do mundo em 2014.
Medição das APPs na beira de rio pelo “leito regular”
A lei atual determina que a APP de beira de rio deve ser medida conforme o “leito regular” do curso de água, segundo sua variação média anual, e não conforme o leito maior medido na cheia, como definia a legislação antiga. Isso implica redução automática e drástica dessas APPs, abrindo caminho para o desmatamento de vastas áreas de mata ciliar e o comprometimento de seus serviços ambientais.
Recomposição de RL desmatada ilegalmente com espécies exóticas
A lei permite recompor metade da RL desmatada ilegalmente com espécies exóticas. Isso Impede a recomposição dos serviços ambientais, como regulação climática, proteção da fauna, polinização e estabilidade do solo.
Cômputo de APP no percentual de RL
Permite computar as APPs da propriedade no total de RL. Isso permite desmatar ou não recuperar RLs desmatadas ilegalmente. A consequência é o comprometimento de serviços ambientais como a regulação climática, a proteção da fauna, a polinização.
APPs de reservatórios
A lei não estabelece o tamanho para as APPs no entorno dos reservatórios d’água artificiais, decorrentes do represamento de cursos d’água naturais. Também dispensa APPs de reservatórios artificiais de água que não decorram de barramento de cursos d’água naturais. Além disso, dispensa APPs em reservatórios com menos de um hectare. O desmatamento dessas áreas reduz a vida útil desses reservatórios, comprometendo o abastecimento de água e de energia.
Aquicultura em APPs
A lei permite implantar obras e instalações para aquicultura (produção de peixes, moluscos e crustáceos) em APPs de beira de rio nos imóveis rurais pequenos e médios. O uso de substâncias químicas nessas atividades, como antibióticos, pode contaminar ecossistemas, animais e plantas.
Encostas com inclinação entre 25º e 45º
A lei libera algumas atividades agrícolas em áreas com inclinação entre 25º e 45º. Trata-se de áreas sensíveis para a estabilidade do solo principalmente. Seu desmatamento pode acarretar deslizamentos e enxurradas e contribuir para inundações
Agricultura em várzeas
A regra vigente permite plantio em várzeas em pequenos imóveis rurais, de até quatro módulos fiscais. A não recuperação de áreas desmatadas nesses locais pode comprometer seus serviços ambientais e processos ecológicos importantes, como a manutenção do abastecimento de água e dos habitats de inúmeras espécies.
Dispensa de recomposição de RL se o desmatamento respeitou regra da época
A norma desobriga o produtor rural de recompor sua RL se ela tiver sido desmatada segundo os percentuais da lei vigente à época. A consequência é a dispensa de recuperação de áreas desmatadas, com o comprometimento de serviços ambientais como a regulação climática, a proteção da fauna, a polinização
Dispensa de RL para ferrovias, rodovias e hidrelétricas
A lei dispensa da obrigação de manter RL os empreendimentos de construção de ferrovias, rodovias e hidrelétricas. Isso libera da obrigação de recuperar e permite desmatar grandes áreas de vegetação nativa, com consequências negativas sobre animais, plantas processos ecológicos e o clima.
A Lei de Proteção da Vegetação Nativa (12.651) foi aprovada em 2012 e revogou o antigo Código Florestal, de 1965. Ela define o que deve ser preservado e o que pode ser desmatado em parte das cidades e nos cerca de 5,5 milhões de imóveis rurais do país. A norma foi elaborada e aprovada com apoio da bancada ruralista e do governo Dilma, reduzindo drasticamente os padrões de proteção ambiental. A estimativa é de que ela liberou os produtores rurais da obrigação de restaurar 41 milhões de hectares desmatados ilegalmente, o equivalente a duas vezes o território do Paraná.
Protege as matas às margens de nascentes e corpos de água, em encostas e topo de morros e serras, bordas de tabuleiros e chapadas e áreas com mais de 1,8 mil metros de altitude. É fundamental para recarga de aquíferos, controle da infiltração e vazão dos rios, evitar o assoreamento e a erosão. Daí sua importância para proteger os recursos hídricos, a estabilidade e qualidade do solo.
A mata localizada nas APPs tem uma série de funções no ciclo hidrológico. Quando a chuva cai numa área com cobertura vegetal, a água infiltra lentamente no solo, até atingir o lençol freático. Aos poucos, aflora nas nascentes e enche rios e represas. O solo da floresta libera um fluxo de água mais constante, mesmo na estiagem. Onde não há floresta, a infiltração da chuva no terreno é mais difícil. Num solo de pastagem, por exemplo, a quantidade de água escoada é até 20 vezes maior que em área de vegetação nativa. Por esse motivo, em período de muita precipitação, áreas desmatadas estão mais sujeitas a enchentes. A água escoa rapidamente e em quantidade, enchendo os rios e represas, mas muitas vezes de forma desastrosa. Neste processo, a água carrega consigo muito material orgânico, erodindo o terreno, assoreando os reservatórios e reduzindo a água disponível.
O desmatamento também ameaça a qualidade da água, porque pode facilitar a contaminação por agrotóxicos, por exemplo. A destruição das APPs pode encarecer o tratamento da água em até 100 vezes.
É a área do imóvel rural que tem de ser preservada para assegurar o uso econômico sustentável, conservar os processos ecológicos, a fauna e flora nativas. Varia de 20% a 80% do imóvel, dependendo do bioma. Na Mata Atlântica, Pampa, Pantanal, Cerrado e nos "campos gerais" na Amazônia Legal: 20%; Cerrado na Amazônia Legal: 35%; floresta na Amazônia Legal: 80%.