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O governo da presidente afastada Dilma Rousseff é frequentemente criticado por ser um dos que menos fez, nos últimos 30 anos, pelos assentamentos de reforma agrária e as áreas protegidas – Terras Indígenas (TIs), Unidades de Conservação e Territórios Quilombolas. Os números confirmam essa realidade. A paralisação no reconhecimento dessas áreas, segundo os especialistas, guarda relação direta com os acordos firmados por Dilma com sua base parlamentar fortemente ruralista.
Mas se o desempenho no setor foi tão baixo, o que precisamos defender?
Para responder a essa pergunta, entre esta e a próxima semana, o ISA publica uma série de quatro reportagens especiais para avaliar o impacto dos atos do governo Dilma sobre o reconhecimento de assentamentos e áreas protegidas. Abaixo você confere um balanço, com opinião de quatro especialistas, do que a gestão de Dilma fez e não fez pela demarcação de Terras Indígenas.
Os dados não deixam dúvidas: no governo de Dilma Rousseff, apenas 21 TIs foram homologadas, 25 TIs foram declaradas e 44 TIs foram identificadas e delimitadas – segundo dados monitorados pelo ISA. O processo de demarcação de TIs é complexo e demorado, envolvendo várias etapas e órgãos, desde a Fundação Nacional do Índio (Funai), até a Presidência de República, passando pelo Ministério da Justiça. (Veja como é a demarcação).
Quando o assunto é homologações, a última etapa da demarcação de TIs, os atos da presidente Dilma Rousseff ficaram restritos à região em que estão 98% das TIs já demarcadas, a Amazônia Legal. Das 21 TIs homologadas só uma está no centro-sul do país, onde os conflitos são mais intensos: a TI Piaçaguera, do povo Guarani Ñandeva, com 2,7 mil hectares, no litoral sul do estado de São Paulo. A caneta de Dilma trabalhou mais nos anos de 2012 e 2015, que tiveram um total de sete decretos de homologação cada. Em 2014, ano de reeleição, nenhum decreto foi assinado.
Já as TIs declaradas pelos ministros da Justiça José Eduardo Cardozo e Eugênio Aragão chegaram à marca de 25. Dessas, 15 estão dentro da Amazônia Legal, a maioria no Amazonas, e outras 10 fora dela: três em São Paulo, três no Rio Grande do Sul, duas no Mato Grosso do Sul e duas no Ceará.
Entre abril e maio de 2016, Aragão assinou quase o mesmo número de portarias declaratórias que seu antecessor, Cardozo, que ocupou a pasta por mais de cinco anos: foram 12 de Aragão contra 13 de Cardozo.
Para Sonia Guajajara, da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), as medidas responderam à mobilização indígena em Brasília na mesma semana em que ocorreu a votação da admissibilidade do impeachment de Dilma no Senado. “Na semana passada, todos os processos estavam paralisados. Com a nossa vinda aqui, eles se sentiram pressionados”, avaliou Sonia, ao final do Acampamento Terra Livre.
No dia 20/5, um grupo de organizações indígenas, indigenistas e ambientalistas, entre elas o ISA, lançaram a campanha “O governo é provisório, nosso direito é originário!” contra a ameaça de revogação, pelo governo interino de Michel Temer, dos últimos atos de reconhecimento de TIs da gestão de Dilma.
O desempenho da Funai também oscilou: a maior parte das portarias de identificação e delimitação de terras foi publicada entre 2011 e 2013, com uma diminuição sensível em 2014 e uma retomada entre abril e maio de 2016. Essa irregularidade acompanhou as mudanças na direção do órgão: em cinco anos, foram cinco presidentes, dois deles interinos. E não faltaram denúncias de que o órgão estava sendo impedido de realizar sua função constitucional de reconhecer Terras Indígenas.
As reclamações começaram já no final de 2011, quando o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) apontou que a constituição de Grupos de Trabalho para iniciar novos processos de demarcação pela Funai estaria submetida à aprovação de Dilma (leia aqui). Em 2013, foi a vez da ex-presidente interina do órgão, Maria Augusta Assirati, denunciar que a Casa Civil e o Ministro da Justiça estariam intervindo politicamente na tramitação dos processos e paralisando o trabalho do órgão (relembre).
Às vésperas do afastamento de Dilma, o então presidente da Funai, João Pedro Gonçalves da Costa, assinou nove portarias de identificação de TIs, boa parte no Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul – onde os conflitos com interesses ruralistas são maiores (confira o placar de demarcações deste ano). A última portaria, da TI Dourados-Amambaipeguá I, área de 55 mil hectares, já enfrenta a oposição de fazendeiros da região sul de Mato Grosso do Sul.
Aluísio Azanha, advogado e cientista social que trabalhou na Funai entre 2007 e 2015, identifica esse atos como um dos pontos positivos de atuação do órgão no governo Dilma, mas pondera: “Se citamos como positivos a delimitação de TIs do povo Guarani no Mato Grosso do Sul (Panambi-Lagoa Rica, Iguatemi-Pegua I, Ypoi-Triunfo e Dourados-Amambaipeguea I) temos que reconhecer que diversas outras terras em estágios mais avançados nesse estado, não tiveram continuidade em seus processos, como é o caso das Tis Sombrerito, Arroio-Korá, Taquara, Yvy Katu, Ñanderu Marangatu, Guyraroka – sobretudo, por razões judiciais”.
Azanha também destaca os esforços para retirar invasores de TIs já regularizadas, inclusive por governos anteriores, caso das TIs Marãiwatséde (MT), Awá (MA) e, recentemente, TI Apiterewa (PA), mas com poucos avanços fora da Amazônia Legal, em razão do baixo orçamento da Funai, carência de técnicos e resistência dos ocupantes não indígenas.
Mesmo tendo estado no foco das demarcações de TIs no governo Dilma, a Amazônia não passou incólume. Grandes projetos hidrelétricos, como Belo Monte, no Rio Xingu, e o Complexo Tapajós, ambos no Pará, parte do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), foram as meninas dos olhos de Dilma, considerada a “mãe” da iniciativa.
A TI Sawré Muybu, do povo Munduruku (PA), que é uma das áreas que serão afetadas pelas cinco hidrelétricas que o governo quer construir no Tapajós, foi cenário de diversos conflitos no período – e de reclamações dos Munduruku sobre seu direito à consulta prévia, livre e informada sobre projeto, garantida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Além de descumprir o tratado, o governo Dilma chegou a publicar, em 2013, um decreto colocando a Força Nacional para acompanhar estudos de impacto ambiental e garantir que eles fossem feitos no prazo. Para os Munduruku, espera: os estudos de identificação de Sawré Muybu, mesmo prontos desde 2013, só saíram em abril de 2016.
Adriana Ramos, coordenadora do Programa de Política e Direito Socioambiental do ISA, lamenta que os direitos indígenas tenham ficado à mercê de negociações políticas no governo Dilma, levando à demora na conclusão de demarcações que sequer tinham impedimentos.
“É sempre bom destacar que algumas das terras declaradas e homologadas constavam das condicionantes de obras como Belo Monte – e mesmo assim demoraram desnecessariamente para ser formalizadas”, critica Ramos. Esse é o caso da TI Cachoeira Seca, homologada em abril de 2016 após 30 anos de luta do povo Arara e que deveria ter sido efetivada seis anos atrás, antes do início das obras de Belo Monte (saiba mais).
Já o antropólogo Luis Donizete Benzi Grupioni, da Rede de Cooperação Amazônica (RCA), ressalta que a presidenta lançou mão de uma política de desenvolvimento obsoleta para a Amazônia, revelando desinteresse em atualizar a matriz energética do país e em olhar para desafios como o das mudanças climáticas.
“Dilma rifou os direitos dos índios. Sua concepção atrasada de desenvolvimento e justiça social alimentou uma velha concepção de que índios e meio ambiente são entraves para o progresso e um problema para as grandes obras de infraestrutura. Pouco se fez para conter a violência contra os povos indígenas, que atingiu níveis de barbárie em certas regiões do país. Tratou o direito de consulta como mera formalidade burocrática e usou e abusou de entulho da época militar, ao lançar mão do instrumento de suspensão de liminar para consumar empreendimentos mal planejados em fatos consumados e não consultados. Nunca é demais lembrar que Dilma, em seus anos de governo, esteve formalmente com representantes dos povos indígenas em apenas duas ocasiões: às vésperas da eleição que lhe conferiu seu segundo mandato e no encerramento da I Conferência Nacional de Política Indigenista, quando afirmou que ‘Democracia é demarcação de terras indígenas’. Pena que isso não tenha sido um lema de seu governo”.
O fato de ter reconhecido mais TIs na chamada Amazônia Legal não é uma exclusividade do governo Dilma. Segundo os dados monitorados pelo ISA, todos os governos desde José Sarney enfatizaram e avançaram mais nessa região.
Para Daniel Pierri, antropólogo do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), o fato de, mesmo no apagar das luzes, o governo Dilma ter reconhecido TIs no sul e no sudeste é importante.
Entre essas terras, está Taunay-Ipegue (MS), palco de conflitos com latifundiários há décadas, que levou doze anos para ser declarada como de posse permanente do povo Terena, em maio de 2016.
O pior legado do governo Dilma, segundo Pierri, está em ter aberto caminho para ataques frontais aos direitos indígenas no Legislativo e no Judiciário. "O governo Dilma de fato foi bastante nocivo aos interesses e direitos dos povos indígenas, mas não tanto pelos aspectos quantitativos, normalmente citados que não refletem bem as diferenças de contexto em cada periodo. Houve nos últimos anos um ataque frontal aos direitos indígenas, especialmente ao direito à terra", critica.
Ele avalia que a paralisação das demarcações pelo Ministério da Justiça fortaleceu teses conservadoras no Judiciário e lembra a visita feita, em 2013, pela então ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, ao Congresso, munida de um suposto laudo da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) que questionava as demarcações feitas pela Funai. “Esse gesto desastroso abriu espaço para a CPI da Funai e para o seu desmonte completo que se anuncia mais fortemente com o governo golpista. Se a Ministra Chefe da Casa Civil critica as demarcações e o Ministro da Justiça as paralisa, qual constrangimento teriam o Legislativo e o Judiciário de questioná-las com cada vez mais força?”, questiona.
“No apagar das luzes do Governo Dilma, atos demarcatórios de imensa importância foram publicados. O governo golpista anunciou que iria rever esses atos, mas aparentemente começa a perceber o constrangimento a que seria submetido e mudou o discurso. É mais cômodo para eles empurrar com a barriga, como Cardozo fazia. Para que esses atos tenham efetividade, é preciso tirá-los do papel. A figura tenebrosa de Alexandre Moraes à frente do Ministério da Justiça não nos permite a ingenuidade de achar que será fácil, mas a luta dos índios sempre foi e continuará sendo o único instrumento eficaz para isso. Não há outra forma de solucionar os conflitos, senão fazendo avançar esses processos, com a retirada dos não indígenas e devolução das terras para os índios. Qualquer outra solução não será outra coisa que gestão do genocídio. Em alguns contextos, a desintrusão é menos complicada, como em Tenonde Porã, por não contrariar tão diretamente interesses poderosos; em outras, como Taunay-Ipegue, há contraposição direta ao cartel ruralista, ainda mais entranhado no governo golpista do que já era nos governos petistas. Mas, em ambos os casos, não creio que os indígenas recuarão”.