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O que o governo Dilma fez (e não fez) pela reforma agrária?

Reportagem que fecha série com balanço da política de ordenamento territorial do governo Dilma mostra redução drástica na distribuição de terras para reforma agrária. Dados e análises sugerem tendência geral de declínio na destinação de áreas de interesse coletivo no País
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Na manhã de 1º de abril, a presidente Dilma Rousseff reuniu ministros, técnicos do governo e militantes no Palácio do Planalto para assinar 21 decretos de desapropriação, totalizando 35 mil hectares destinados a assentamentos, além de quatro decretos de territórios quilombolas. Em 2015, Dilma não desapropriara um único hectare para reforma agrária, o pior resultado em mais de 20 anos.

A cerimônia de anúncio dos decretos pretendia reaproximar a presidente do movimento social e sinalizar alguma força política diante do cenário desanimador do impeachment. Nas semanas seguintes, até às vésperas e mesmo no dia da aprovação do afastamento temporário da presidente pelo Senado (12/5), o Planalto também fez avançar, em diferentes etapas, mais processos de quilombos e outros de Terras Indígenas (TIs) e Unidades de Conservação (UCs), assim como fizera com os decretos de reforma agrária.

O pedido de socorro escancarava não apenas o próprio distanciamento de parte da base social do governo, mas também um de seus motivos: o represamento deliberado desses processos. Vários estavam prontos há anos, aguardando apenas o aval político do Planalto para ser liberados.

Para tentar entender o que aconteceu com a reforma agrária nos últimos cinco anos, o ISA publica, hoje, a quarta e última reportagem da série com um balanço da política territorial do governo de Dilma.

Leia as reportagens da série sobre Terras Indígenas, Unidades de Conservação e Territórios Quilombolas


Redução drástica na distribuição de terras

Os números não deixam dúvida sobre a redução drástica na distribuição de terras para reforma agrária no período, processo semelhante ao ocorrido com TIs, UCs e territórios quilombolas, como já mostrado pelo ISA nas reportagens anteriores da série – o que sugere uma tendência geral de declínio na destinação de áreas de interesse coletivo.

Entre 2011 e 2015, a administração Dilma teria fixado 133,6 mil famílias em assentamentos. No 1º mandato de Lula, teriam sido assentadas 381,4 mil famílias e, no 2º mandato, mais 232,6 mil famílias. A média de Lula é de 76,7 mil famílias por ano, contra uma média em torno de 25 mil famílias sob Dilma. Os dados são do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

“A política agrária do governo de Dilma conseguiu ser a pior de todos os governos desde a Ditadura Civil-Militar, incluindo esta”, critica Rubem Siqueira, da coordenação da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Ele acredita que, enquanto o governo Lula ainda fez um esforço para conciliar reforma agrária, agricultura familiar e agronegócio, a gestão de Dilma teria abandonado a ideia de distribuir terras.

A polêmica estende-se aos próprios números. O professor da USP Ariovaldo Umbelino de Oliveira considera que as estimativas do Incra são disponibilizadas de forma imprecisa, o que pode induzir a erro. De acordo com Oliveira, a “Relação de Beneficiários” divulgada pelo órgão fundiário federal incluiria, além dos números sobre famílias em novos assentamentos, também os relacionados ao reassentamento de atingidos por projetos de infraestrutura, reconhecimento de assentamentos antigos e projetos de colonização em terras públicas, os quais, segundo o pesquisador, não podem ser contabilizados como “reforma agrária”.

“Desde o governo de Fernando Henrique, os dados começaram a vir desse jeito, que é exatamente para dizer que estão assentando mais do que, de fato, estão”, alerta. Ao desagregar o dado do Incra, Oliveira aponta que, na gestão Dilma, por exemplo, a quantidade de famílias fixadas em assentamentos novos seria, na realidade, de apenas 20,5 mil, uma diferença de quase 85% para a estimativa oficial (veja gráfico).

O volume de famílias assentadas é considerado um dos principais indicadores de desempenho no setor, mas a reforma agrária envolve uma série de etapas, incluindo também a desapropriação de áreas privadas improdutivas, via decreto presidencial, e sua incorporação efetiva pelo Incra, com a oficialização dos assentamentos, por portaria ministerial. Há ainda outras modalidades de obtenção da terra, como a compra convencional pelo Estado, e políticas de moradia, assistência técnica e crédito para os assentados, entre outras.

A administração Dilma apresenta queda expressiva no volume tanto de assentados quanto de áreas desapropriadas e novos assentamentos. Trata-se, no entanto, do recrudescimento de uma tendência presente já no segundo mandato de Lula (veja gráfico).

“Os números de assentamentos durante o mandato de Dilma foram pífios e, praticamente, paralisou-se a criação de novas áreas em 2014 e 2015”, avalia João Pedro Stédile, da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Políticas para assentamentos, ao invés de distribuição de terras

Se é notória a queda nos números de famílias assentadas e áreas desapropriadas ou efetivamente incorporadas à reforma agrária no governo Dilma, está claro que eles são favoráveis sobretudo ao primeiro mandato de Lula. Especialistas, militantes e políticos ouvidos pelo ISA concordam ainda que as administrações petistas fizeram esforços relevantes para tentar estruturar os assentamentos e dinamizar a agricultura familiar. São destacados como avanços do período o incremento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), com uma série de linhas de financiamento agrícola, e a criação do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), de compra da produção desses segmentos.

“Não é fazer reforma agrária, mas é melhorar as condições de vida dos assentados”

“A outra coisa que o governo Lula fez e também a Dilma deu continuidade foi a reorganização, reestruturação ou organização dos assentamentos existentes. Portanto, não é fazer reforma agrária, mas é melhorar as condições de vida dos assentados. Isso se deu em dois níveis: o primeiro é o de apoio institucional, de políticas públicas; o segundo nível através do investimento, que começou com o governo FHC, mas foi ampliado, melhorado e requalificado de forma bastante intensa pelo governo Lula, que é o Pronaf. Ele não é só para reforma agrária, é para toda a agricultura familiar, mas tem um impacto extraordinariamente grande nas áreas que já passaram pela reforma agrária.”

Carlos Frederico Marés, professor da PUC-PR e sócio fundador do ISA

“Se formos avaliar a quantidade de famílias assentadas e de terras para assentamentos, vamos ver que foi pequena, mas houve vários avanços importantes no governo da presidenta Dilma Rousseff”, defende o deputado federal e coordenador do Núcleo Agrário do PT, João Daniel (SE). Ele lista o Programa Nacional de Habitação Rural e a renegociação de dívidas como iniciativas que beneficiaram os assentados nos últimos anos.

Stédile reconhece a importância do PAA e dos investimentos em moradia, mas minimiza seus resultados na gestão Dilma. “Mesmo essas duas boas políticas tiveram alcance limitado, porque sempre dependiam de recursos e da boa vontade de ministros. E nos últimos dois anos, em função da crise econômica e da falta de recursos públicos, foram definhando. E mesmo que o governo tivesse priorizado essas políticas, elas não poderiam ter substituído as desapropriações”, contesta.

Opção pelo agronegócio, de novo

Mais uma vez, a opção pelo fortalecimento do agronegócio e as alianças dela decorrentes são apontadas por pesquisadores e militantes como causa principal do retrocesso na democratização do acesso à terra já no início do ciclo petista no governo.

“Em 2003, 2004, quando o Lula não consegue alterar a estrutura jurídica para promover a reforma agrária, os setores do agronegócio e do ruralismo, junto com o Judiciário, começam a tomar cada vez mais posições francamente contrárias à reforma agrária. Isso é um crescendo”, rememora Carlos Frederico Marés, professor da PUC-PR e sócio fundador do ISA. “Os setores do agronegócio começam a pressionar para a modificação das leis de dentro do governo, não de fora, nos dois governos [de Lula e de Dilma]”, complementa Marés. Ele lembra que o II Plano Nacional de Reforma Agrária, elaborado no início do primeiro mandato de Lula, trazia a meta de assentar 500 mil famílias em quatro anos, mas foi abandonado pouco depois.

Embora o Ministério da Agricultura sempre tenha sido ocupado por grandes defensores do agronegócio desde 2003, a ida da senadora Kátia Abreu (PMDB-TO) para a pasta, no início do segundo mandato de Dilma, é considerada simbólica da busca por ampliar a aposta no agronegócio diante do agravamento da crise e do isolamento do governo. A ex-presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) era, até então, não apenas uma das principais figuras do ruralismo, mas uma de suas lideranças mais conservadoras. “Latifúndio não existe mais”, afirmou à Folha de S. Paulo, em janeiro de 2015. Na entrevista, ela defendeu uma reforma agrária “pontual” e voltou a criticar as ocupações de terras feitas pelos movimentos sociais (leia aqui).

“Do ponto de vista teórico, acadêmico, e do ponto de vista político, o grupo predominante no PT não acredita na reforma agrária. Eles entendem que a reforma agrária não é mais necessária, que a grande propriedade produz alimentos”, analisa Ariovaldo de Oliveira. Para ele, o pensamento que passou a predominar nas administrações petistas foi o de que a distribuição de terras tinha apenas uma função social, e não mais um papel econômico, e de que ela deveria ser executada somente onde não houvesse alternativa.

Dois pontos de vista sobre reforma agrária

Enquanto grande parte dos movimentos sociais do campo atribui o refluxo na divisão de terras, nos últimos anos, à opção pelo fortalecimento do agronegócio, alguns especialistas e políticos consideram que há um esgotamento da reforma agrária no país.

“Falta de uma visão estratégica para o campo"

“Acho que vários fatores implicaram esse retrocesso na reforma agrária em relação ao ritmo do governo Lula: a falta de uma visão estratégica para o campo; a aliança política que se aprofundou com o agronegócio; uma visão distorcida de que a reforma agrária é cara, como se dependesse de recursos do tesouro; e uma equipe administrativa muito tecnocrática e ignorante para os temas agrários, em especial na Casa civil, que passou a brecar todos os processos de desapropriação.”

João Pedro Stédile, MST

“Reduziu-se fortemente a demanda social por terra no Brasil”

“Reduziu-se fortemente a demanda social por terra no Brasil, a partir dos anos mais recentes. O meio rural vem observando um crescente esvaziamento populacional e, por esta razão, os salários rurais vêm subindo. Somado às políticas de transferência de renda (Bolsa Família e outros), foi se tornando desafiador arregimentar famílias rurais pobres para as ações de pressão. Daí a redução da demanda por terra, o que veio coincidir com o relativo desinteresse do governo Rousseff pelo tema e, mais recentemente, as dificuldades de alocar recursos para tal finalidade.”

Zander Soares de Navarro, Embrapa

A comparação entre o financiamento disponível para o agronegócio e a agricultura familiar é indicativa da prioridade dada aos dois setores. Entre 2003 e 2015, os recursos oficiais disponíveis para médios e grandes produtores rurais aumentaram de R$ 20,5 bilhões para R$ 187,7 bilhões, enquanto que os do Pronaf saltaram de R$ 4,2 bilhões para R$ 28,9 bilhões. Durante as gestões petistas, o financiamento para o agronegócio manteve-se no patamar médio dos 85% do total do financiamento agrícola oficial. As informações são do extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).

O Incra não retornou os pedidos de entrevista até a publicação desta reportagem.

Paraíso do latifúndio

No Brasil, 89 milhões de hectares já foram distribuídos para a reforma agrária, mais ou menos uma vez e meia a extensão da França. Nessas áreas, vivem 977 mil famílias. Isso não impediu que o país continuasse a ser conhecido como um paraíso do latifúndio. Atualmente, existem no território nacional 5,7 milhões de imóveis rurais, somando 521,8 milhões de hectares. Os grandes fazendeiros detêm pouco mais de 2% do número de imóveis, que abrangem, entretanto, quase metade da área total, um território quase do tamanho da Argentina. Os dados são do Incra (veja gráfico).

O índice de Gini de concentração fundiária é praticamente o mesmo desde meados do século XX, na casa dos 0,840 (quanto mais perto de 1, mais concentrada é a terra). Entre os países de extensão territorial e agricultura mais importantes, o Brasil é o segundo com maior concentração da terra, atrás apenas da África do Sul, onde o regime de segregação racial determinou a estrutura agrária, informa Zander Soares de Navarro, pesquisador da Embrapa.

A situação continua causando conflitos no campo. Segundo o MST, atualmente haveria no país 120 mil famílias acampadas à espera de um lote. De acordo com a CPT, nos últimos 30 anos, 1.773 pessoas foram assassinadas por causa desses conflitos. Só em 2015, ocorreram 47 mortes, 771 conflitos, 200 ocupações e retomadas.

Texto de Oswaldo Braga de Souza; infográficos de Tatiane Klein
ISA
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