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"Se chegar aqui vai acabar com todos nós", afirma Akã Panará, em áudio enviado da aldeia Nãnsepotiti, Terra Indígena Panará (PA), ao se referir à pandemia da Covid-19. Quase cinco décadas após o contato oficial de seu povo, quando a população estimada entre 450 e 400 pessoas caiu para 79 por conta de surtos de gripe, os indígenas se preocupam que a história possa se repetir.
Já são 14 mil casos do novo coronavírus confirmados no Pará, e 103 entre indígenas no Brasil, segundo levantamento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Em Guarantã do Norte, cidade referência para os Panará, já foi contabilizada uma morte e dois casos.
Com a memória viva do "tuk pirê ha" ou "o tempo em que todo mundo morreu”, Akã, liderança histórica dos Panará que sobreviveu à doença na época do contato teme que o vírus chegue ao seu território: “Nós pegamos mas conseguimos sobreviver, nós já passamos pela doença. Poucas pessoas conseguiram sobreviver, mas estamos aqui até hoje. Essa doença apareceu de novo, estou muito preocupado”.
Estimada entre 450 e 400 pessoas antes do contato em 1973, segundo o antropólogo Richard Heelas, a população caiu para 79 indivíduos em 1975. A epidemia chegou com a BR-163, rodovia que começou a ser construída em 1971 como parte do Plano de Integração Nacional do Governo Militar, e cortou o território dos Panará ao meio.
“Nós estávamos em nossas matas e vivíamos bem e sadios até os não-indígenas aparecerem. De repente eles apareceram com sua estrada enorme, a BR-163, no meio da aldeia antiga Kwêpô”, diz um trecho do Protocolo de Consulta do povo Panará. A instalação das frentes de obras trouxe surtos de gripe e a valorização das terras, a atração de correntes migratórias e a especulação fundiária provocaram consequências trágicas para os indígenas.
“Os brancos chegaram. Todos os Panará morreram, lá nas casas novas. A tosse, catarro e dor de peito matou mesmo todo mundo. Morreu todo mundo, e os outros saíram... Minha mãe morreu, então, lá em Yopuyúpaw. Meu irmão e minha mãe morreram assim, lá nas casas novas. Os outros partiram e morreu todo mundo no caminho. Ficaram morrendo, e acabou. Não enterravam. Estavam fracos para enterrar os mortos. Estavam muito doentes e por isso não enterraram. Apodreceram todos no chão. Os urubus comeram todos no chão, pois não enterraram”, conta Akã, em depoimento ao antropólogo Stephan Schwartzman em 1991. [Conheça a história no livro “Panará: a volta dos índios gigantes”]
Em novembro de 1994, Teseya Panará e as mulheres Sàrkyarasà, Kyütakriti e Swakie, constituíram, um por um, a lista de Panará mortos por doenças epidêmicas entre 1973 e 1975. A lista contabiliza 176 indivíduos mortos na época.
“Uma lição essencial que precisa ser colocada é que grupos isolados continuam extremamente vulneráveis a esse tipo de epidemia. Medidas coerentes e fortes para proteger essas populações são fundamentais. O Akã não está inventando nada. Seu relato é a experiência amarga e trágica de seu povo. É importante divulgar e trazer atenção do poder público”, alerta Schwartzman.
Os Panará estão respeitando o isolamento social em suas aldeias, mas temem a aproximação do novo coronavírus. Em carta divulgada no último domingo (17), os Panará pedem que a Fundação Nacional do Índio (Funai) impeça o translado de freteiros na Terra Indígena. “Nós estamos muito preocupados com a chegada de Covid-19 no nosso município de Guarantã do Norte”, diz o texto. [Leia a carta]
Em 1975 os Panará foram levados ao Parque Indígena do Xingu, hoje conhecido como Território Indígena do Xingu (MT), onde viveram por 20 anos sem nunca deixar de lado o sonho de voltar para seu território tradicional. Finalmente, em 1996, a Terra Indígena Panará foi demarcada.
“Não nos acostumamos com o cerrado e sentíamos muita saudade da floresta e de nossas terras para cultivar. Por este motivo decidimos retornar ao nosso território”, dizem em seu Protocolo de Consulta. Parte de seu território tradicional, no entanto, havia sido “comido pelos não-indígenas” que construíram cidades como Guarantã do Norte, Matupá, Peixoto de Azevedo e Colíder, como os Panará puderam confirmar em uma série de sobrevoos.
“Todos nos disseram que iríamos morrer se voltássemos para nossas terras, que os pistoleiros, os fazendeiros, os garimpeiros e os madeireiros iriam nos matar. Nós não tivemos medo, nós somos fortes, nós somos Panará”, ressaltam no texto. Assim, os Panará passaram a lutar pela demarcação da região nordeste, onde ainda havia porções de floresta, que viria a se tornar a Terra Indígena Panará em 1996.
O processo de retomada do território caminhou junto com uma ação movida em 1994 contra a União por reposição territorial e perdas e danos aos indígenas. Em 2000, em decisão inédita, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região deu ganho de causa aos Panará, condenando por unanimidade a União e a Funai a pagar uma indenização pelo trágico contato. Esta foi a primeira e única decisão do Judiciário brasileiro a reconhecer a responsabilidade do estado com relação à sua política para os índios.
Após o retorno, houve um expressivo crescimento demográfico. Em 1997, a população somava 178 pessoas, hoje são quase 600 vivendo em seis aldeias - Sõnkârãsãn, Kresãn, Sõnkwê, Nãnsêpotiti, Kôtikô e Kanaã. “Para cá nos mudamos, refizemos nossas roças redondas e retomamos nosso tamanho populacional anterior ao extermínio praticado pelos não-indígenas”, diz o texto.
Saiba mais sobre a história de resistência do povo Panará no especial “Panará, a volta por cima dos índios gigantes”, feito em comemoração aos 20 anos de retorno dos indígenas ao seu território.