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Pandemia escancara fome nas periferias, e cooperativa quilombola distribui alimentos em ações emergenciais

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Em 1 ano e 4 meses, comunidades do Vale do Ribeira (SP) levaram 249 toneladas de produtos das roças a 31 mil pessoas em situação de vulnerabilidade
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Contra a fome e a Covid-19, a Cooperativa de Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale), com sede em Eldorado (SP), mantém desde maio do ano passado, com o apoio de parceiros, ações de distribuição de alimentos das roças dos quilombos a famílias vulneráveis no Estado de São Paulo.

Em 1 ano e 4 meses de ações emergenciais, a cooperativa quilombola realizou 17 entregas com, ao todo, 249 toneladas de alimentos para um número estimado de 31 mil pessoas.

Foram atendidos indígenas, quilombolas e moradores urbanos em municípios do Vale do Ribeira, como Iporanga, Eldorado, Iguape, Pariquera-Açu, Miracatu, Registro e Sete Barras, em municípios da Grande São Paulo, como Embu das Artes, Jandira e Guarulhos, e no Vale do Paraíba, como São José dos Campos e Taubaté.

“Os projetos de entrega de alimentos para a merenda escolar acabaram. Se não fossem as parcerias, a gente poderia ter fechado a cooperativa”, contou Rosana de Almeida, do Quilombo Nhunguara, coordenadora financeira da Cooperquivale. “A gente hoje sente orgulho de receber o recurso, ajudar os produtores e as pessoas que recebem o alimento.”

Em cestas, kits ou caixas para distribuição, a cooperativa enviou 42 variedades de produtos das roças dos quilombos, entre frutas, legumes, tubérculos e mel, bem como produtos minimamente processados, como banana chips, mandioca chips, taiada e rapadura.

Assista ao vídeo que acompanha uma das entregas, do quilombo à favela:

A alta diversidade de alimentos das roças quilombolas, produzida sem agrotóxicos e a partir de técnicas ancestrais, fazem parte do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola, reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio imaterial do Brasil. Parte dessa produção já tem certificação orgânica.

“Os produtores estão muito felizes, eles puderam ter mais diversidade nas roças. Coisas que às vezes nem plantava e hoje está entregando. Para eles é um orgulho entregar essa variedade”, afirmou Almeida. “Cará de espinho é um exemplo. Antes não tinha nem saída e hoje a gente consegue entregar bastante.”



As articulações para distribuição de alimentos da Cooperquivale envolveram, desde maio do ano passado, organizações da sociedade civil como o Instituto Socioambiental (ISA), o Instituto Linha D’Água e a Associação de Moradores da Enseada da Baleia, a ONG Bloco do Beco, as associações de moradores Brasilândia e do Jardim São Remo, e o Instituto Brasil a Gosto, que formatou uma campanha de arrecadação de recursos com o apoio do Magazine Luiza.

‘Se tem gente com fome, dá de comer’

“Tantas caras tristes querendo chegar em algum destino, em algum lugar. Se tem gente com fome, dá de comer”, destacou o poeta e ator pernambucano Solano Trindade ao escrever o poema que dá nome à campanha Tem Gente Com Fome.

A campanha, um financiamento coletivo de arrecadação de fundos, atua nacionalmente desde março deste ano realizando ações emergenciais de combate à vulnerabilidade social causada ou agravada pela pandemia.

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Mais recentemente, a Cooperquivale passou a distribuir alimentos no âmbito da campanha Tem Gente com Fome, organizada pela Coalizão Negra por Direitos em parceria com a Anistia Internacional, Oxfam Brasil, Redes da Maré, Ação Brasileira de Combate às Desigualdades, 342 Artes, Nossas - Rede de Ativismo, Instituto Ethos, Orgânico Solidário, Grupo Prerrogativas e Fundo Brasil.

Em julho e agosto, famílias em favelas, periferias e comunidades tradicionais no Estado de São Paulo receberam da cooperativa quilombola 2.760 cestas, para um total de 21,2 toneladas de alimentos distribuídos.

“A pandemia escancarou vários problemas que já existiam nas periferias. Trazer a comida dos quilombos às periferias, espaços majoritariamente negros, é trazer o debate sobre o direito à alimentação e do direito à terra. Essa discussão é o que mais fortalece essa conexão entre os movimentos negros e os quilombos do Vale do Ribeira”, afirmou Adriana Rodrigues, consultora da cooperativa quilombola.

“A privação da terra e a migração forçada do campo para a cidade após a abolição são grandes problemas enfrentados historicamente pela população negra”, continuou.

No dia 21 de agosto, entrega mais recente realizada pela cooperativa, foram entregues 1.500 cestas, sendo 1.000 em 11 unidades da União de Núcleos de Educação Popular para Negras/os e Classe Trabalhadora (UNEAFRO) nos municípios de Guarulhos, Taubaté, São José dos Campos e São Paulo. E 500 cestas foram destinadas a 10 terreiros de candomblé na capital paulista.

“Historicamente falando, levar alimentos dos quilombos a terreiros de candomblé cria uma conexão importantíssima, porque o terreiro é um espaço religioso e um espaço de resistência negra”, disse Adriana Rodrigues.

Em setembro, mais 200 cestas de alimentos dos quilombos do Vale do Ribeira serão entregues nos quilombos urbanos de Brotas e São Roque, no município de Itatiba. A ação é uma parceria com a Coalizão Negra por Direitos e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

“Mesmo sendo o Estado mais rico do país, São Paulo apresenta uma realidade social marcada por um enorme contingente de pessoas empobrecidas. Uma vez mais a marca é a desigualdade”, observou José Raimundo Ribeiro, membro do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (Comusan), da Prefeitura de São Paulo.

“Em 2018, por exemplo, São Paulo era a unidade da federação com maior número de domicílios classificados em situação de fome (1,2 milhões de domicílios) e em risco de fome (3,6 milhões de domicílios), quando o IBGE aplicou a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA)”, disse.



A crise alimentar que o país vive foi agravada com a pandemia e, segundo ele, ações de distribuição de alimentos como a da Cooperquivale são uma “assistência indispensável, além de ser uma fonte de alimentos saudáveis”.

“Simbólica e politicamente, o impacto é ainda mais amplo, pois demonstra que nos momentos de crise o que nos resta muitas vezes é a solidariedade entre aqueles que sofrem cotidianamente com a expropriação de suas terras, com a exploração em seus trabalhos, com a opressão do Estado em seus três níveis de governo. Experiências como essas dão um conteúdo prático para o ativismo alimentar”, afirmou Ribeiro.

As ações emergenciais de distribuição de alimentos contam com apoio financeiro da União Europeia e da Good Energies. O recurso é utilizado para aquisição de alimentos e logística, e garante remuneração justa para os quilombolas cooperados.

Mais que uma pandemia, uma sindemia

Quando a campanha Tem Gente com Fome foi lançada, pouco mais de um ano após a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhecer a Covid-19 como uma crise sanitária mundial, o Brasil não vivia apenas uma pandemia, mas uma sindemia.

De acordo com o médico e antropólogo Merrill Singer, a expressão é a união das palavras sinergia e pandemia. Para ele, em uma epidemia sindêmica o vírus não atua sozinho, mas sim por meio de uma combinação com outras variáveis, podendo amenizar ou piorar o quadro da pessoa quem for infectada dependendo do cruzamento dessas informações.

Essas variáveis vão desde doenças pré-existentes, que no caso da Covid-19 colocavam essas pessoas no grupo de risco, até dificuldade em acessar os serviços básicos de saúde e saneamento, por exemplo.

O contexto de desigualdade social no Brasil fez com que a sindemia seja ainda mais impactante para pessoas negras, tanto em número de casos e óbitos quanto em situação de vulnerabilidade social.

Nos últimos anos, o país viu o índice de insegurança alimentar crescer, saltando de 7,2 milhões em 2013 para 10,3 milhões de pessoas em 2018 que enfrentavam a fome no seu dia a dia, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Com a crise sanitária, este número quase dobrou e 19 milhões de pessoas encontravam-se em situação de fome no final de 2020, de acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil.

Além da fome, a pandemia ajudou a agravar outros problemas sociais. No primeiro trimestre de 2021, o país registrou uma média nacional da taxa de desemprego de 14,7%, o que corresponde a 14,8 milhões de brasileiros desempregados.

Destes, pessoas pretas e pardas ficaram acima da média nacional de desocupação, com taxas de 18,6% e 16,9%, respectivamente, de acordo com Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), publicada pelo IBGE em maio deste ano.

Os números são superiores aos da pesquisa anterior, que apontava que em 2020 13,4 milhões de brasileiros estavam sem trabalho - formal ou informal. Juntamente com a perda de renda e com o aumento do preço dos alimentos surgiram ações emergenciais de doações para minimizar os impactos econômicos da pandemia na população negra.

Andressa Cabral Botelho e Roberto Almeida
ISA
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