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“Quem sou eu? Quilombo!”, gritava o plenário, de punhos levantados. Assim terminaram três dias de trabalho de quilombolas de todo o Brasil para desenhar uma política pública para a gestão territorial e ambiental de seus territórios. A oficina, realizada em Brasília (DF) entre os dias 23 e 25 de julho, reuniu mais de 60 lideranças quilombolas, que debateram um documento de diretrizes feitas por elas mesmas para esta política, ainda em fase de elaboração.
O encontro na capital federal foi a última etapa de um processo que durou sete meses, atravessando as cinco regiões do país e seus diferentes biomas, com oficinas em sete territórios quilombolas. Discutindo temas como a titulação dos territórios, fortalecimento comunitário, educação, cultura e conservação ambiental, as oficinas contaram com a participação de 320 pessoas de 130 comunidades e foram realizadas pela Associação de Quilombos para Cooperação Negra Anastácia (NA) e pelo Instituto Socioambiental (ISA), sob coordenação do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e com apoio da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
Kátia Penha, da comunidade Divino Espírito Santo (ES) e representante da NA, conta que as oficinas territoriais tiveram o objetivo de dar visibilidade ao modo como os quilombolas vêm cuidando de seus territórios há séculos. Também contribuíram para formar e informar sobre uma proposta de política pública que possa fortalecer essas práticas tradicionais e apoiar a luta pelo reconhecimento de seus territórios: “Cada comunidade, das 6000 que existem nesse Brasil, precisa pensar que gestão territorial é essa”, pontua.
Durante três dias, os representantes de comunidades e organizações quilombolas reuniram-se em plenárias, grupos de trabalho, rodas de conversa e atividades culturais, em torno de um documento-base, sistematizado pelo ISA a partir do material produzido pelas comunidades nas oficinas. Organizado em cinco eixos - integridade territorial e conservação ambiental; produção sustentável, alimentação e renda; ancestralidade, identidade e patrimônio cultural; educação e formação; e organização social -, o texto pautou os grupos, mas segue com diretrizes abertas a correções e novas formulações.
O movimento pressionou para que governo dê os próximos passos, entre eles, a criação de um grupo técnico para avançar na redação do documento da política; a ampliação da participação de órgãos governamentais e da oferta de editais para projetos de gestão; além da realização, pela Conaq, de oficinas estaduais. Diante das demandas, Juliana Simões, secretária de Extrativismo e Desenvolvimento Sustentável do MMA, sustentou a proposta de criação de um Grupo de Trabalho Interministerial para a construção da política, que deverá propor a edição de uma portaria ou decreto. A estratégia será decidida na próxima reunião entre representantes quilombolas, do governo e de organizações de apoio.
O encontro também reservou momentos para revelar iniciativas exitosas de gestão, como os Planos de Gestão Territorial e Ambiental das comunidades quilombolas do Jalapão (TO) (veja aqui) e os Protocolos de Consulta elaborados por territórios no Pará; também foram apresentados os resultados de cinco projetos financiados por um edital lançado pelo MMA em 2016. Segundo o documento, a gestão territorial e ambiental quilombola tem como objetivo proteger, conservar e manejar de forma sustentável os recursos naturais dos territórios quilombolas, promovendo também sua valorização cultural - independente da situação fundiária em que se encontrem. “Fazer a gestão territorial e ambiental é a gente proteger nossos territórios para nossos filhos e nossos netos”, resume Denildo Rodrigues de Moraes, o Biko, da Conaq.
Para Adriana Ramos, coordenadora do Programa de Política e Direito Socioambiental (PPDS) do ISA, “foi uma lufada de ar fresco poder discutir o futuro da gestão territorial nesse cenário que vive o país hoje”. Ela destaca a quantidade de iniciativas que já têm sido desenvolvidas pelas comunidades e reitera que, independente do cenário político que venha se desenhar no país com as eleições, as comunidades quilombolas demonstram maturidade para dar seguimento à essa construção.
As atividades também contaram com a participação de representantes da Universidade de Brasília (UnB), do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), da Fundação Cultural Palmares (FCP) e da Secretaria Especial de Políticas Públicas e Igualdade Racial (Seppir) – e foram financiadas pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
Um dos problemas discutidos foi a sobreposição com Unidades de Conservação, em que, não raro, o reconhecimento de quilombos enfrenta oposição dos próprios órgãos ambientais. Atualmente existem 60 Unidades de Conservação federais e estaduais sobrepostas a territórios quilombolas, segundo levantamento feito pelo ISA em 2018.
É o caso de duas comunidades de Oriximiná, no Pará, que, após décadas de luta, comemoram a publicação das portarias de reconhecimento e declaração de seus territórios pelo Incra no dia 19 de julho e a assinatura de um acordo de gestão compartilhada com o MMA e o ICMBio das áreas sobrepostas por duas UCs de proteção integral: a Reserva Biológica (Rebio) do Rio Trombetas e a Floresta Nacional (Flona) Saracá-Taquera. “Desde a década de 1980 que a gente vem lutando pela liberdade e a gestão dos nossos territórios. A gente precisa ter ele em mãos para determinarmos e mandarmos no que é nosso. Para nós é uma grande vitória”, conta Ari Carlos Printes, da Associação Mãe Domingas do Alto Trombetas.
Seu Dileudo, da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS), fechou sua participação no evento compartilhando a angústia de viver em um país em que muitas leis são criadas e poucas são cumpridas - especialmente quando se trata dos direitos dos negros. “Hoje nós estamos aqui fazendo documento para virar lei. É uma forma que a gente vai alimentando essa esperança e vai entrando governo, vai saindo governo, e nada é feito. Nós estamos pedindo aquilo que de direito é nosso”, protestou.
Todas as oficinas territoriais contaram com a participação de representantes indígenas, que compartilharam com as comunidades quilombolas a experiência de dez anos de construção da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial de Terras Indígenas (PNGATI), criada por decreto em 2012, mas sem orçamento próprio para ser implementada. Uma das preocupações com o modelo de financiamento da política quilombola é que ela não sofra do mesmo problema.
Ouvir dos indígenas como a PNGATI tem ou não saído do papel foi essencial, avalia Kátia Penha, para quem só a mobilização das comunidades fará com que a nova política se efetive: “Não pensemos nós que vamos sair daqui hoje com isso; não vai sair. A gente está num momento de fragilidade política. A gente não está iludido, não. A gente está com muito pé no chão”.
Mauro Pires, diretor do Departamento de Extrativismo do MMA, lembra que as oficinas são resultado de um processo iniciado em 2006, com a elaboração do Plano Nacional de Áreas Protegidas (PNAP), documento pioneiro no reconhecimento da importância das áreas indígenas, quilombolas e de comunidades extrativistas para a conservação ambiental. Em 2013, o Ministério constituiu um grupo de trabalho para discutir a GTAQ e dois anos depois, em 2015, iniciou o trabalho de elaboração das diretrizes que agora estão sendo discutidas pelos quilombolas. O diferencial desta última etapa está em ter levado a discussão às comunidades, explica Pires: “Foi extremamente rico, porque começamos a ver que a gestão ambiental já acontece na prática nesses territórios”.
Para o movimento, o tema não é novidade e essa história foi recuperada em linhas do tempo, construídas a cada encontro: “Nós, quilombolas, entendemos a gestão territorial não a partir só dos marcos legais, mas a partir do momento que nosso povo desceu dos navios e ocupou as comunidades quilombolas. O processo de gestão territorial começa ali, 500 anos atrás”, reforça Biko.
Célia Pinto, também da Conaq, lembra que as questões ambientais e a luta pelo reconhecimento dos Territórios Remanescentes de Quilombo nunca estiveram dissociados. É justamente por isso que a regularização fundiários é prioritária na proposta “Os territórios quilombolas são dinâmicos, tanto em sua extensão, quanto em sua constituição”, afirma. Segundo dados da Comissão Pró-Índio de São Paulo, dos 1.696 processos de reconhecimento de quilombos abertos pelo Incra, em julho de 2018, apenas 175 tinham chegado ao estágio final do processo, a titulação das terras.