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Reportagem: Victor Pires
Edição: Oswaldo Braga de Souza
Texto atualizado em 11/9/2020, às 13:35
A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) protocolou, nesta quarta-feira (9), no Supremo Tribunal Federal (STF), uma Arguição de Descumprimento de Direito Fundamental (ADPF) com o objetivo de obrigar o governo federal a adotar medidas de urgência no combate à pandemia nos quilombos. A ação é apresentada no momento em que aumenta o número de mortes e casos confirmados de Covid-19 entre essas comunidades na maioria dos estados.
A ADPF foi distribuída ao ministro Marco Aurélio Mello e recebeu o número 742. Esse tipo de ação busca evitar ou reparar dano a algum princípio básico da Constituição resultante de ato ou omissão do Poder Público.
“O que a população quilombola pede é atendimento básico. Não é nada que as outras pessoas não tenham. É o que a gente tem direito e não está tendo”, pontua Vercilene Dias, advogada quilombola e assessora jurídica da Conaq.
Os pedidos feitos na ADPF incluem medidas que garantam segurança alimentar e nutricional das comunidades, acesso a leitos hospitalares e testes regulares para quem está com suspeita de contaminação, além da distribuição de materiais de higiene e equipamentos de proteção individual.
Visando à construção rápida de um Plano Nacional de Combate aos Efeitos da Pandemia da Covid-19 nas Comunidades Quilombolas, a Conaq sugere a constituição de um grupo de trabalho com a participação de representantes dos quilombolas, órgãos do governo, Ministério Público Federal (MPF), Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDI), Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e Defensoria Pública da União (DPU).
“Neste caso, a ADPF é o instrumento mais ágil e eficiente para fazer com que o governo federal cumpra a Constituição e as leis e preste apoio às comunidades quilombolas no combate aos efeitos decorrentes da pandemia”, diz o assessor jurídico do ISA Fernando Prioste. Ele avalia que, apesar de a Lei 14.021/2020 prever medidas de enfrentamento à Covid-19 entre indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais, nada de significativo foi feito até agora para implementá-la.
A Conaq também exige que sejam incluída no monitoramento e divulgação dos casos e óbitos no país a informação sobre a raça/cor e pertencimento à comunidade quilombola. A sistematização e comunicação do primeiro tipo de dado pelos governos federal e estaduais começaram atrasados e foram bastante falhos. Em relação aos quilombolas, simplesmente não foi feito nenhum registro.
Por causa disso a Conaq desenvolveu a Plataforma Quilombo Sem Covid-19. De acordo com ela, até ontem, 157 quilombolas já haviam morrido da doença no país, os casos confirmados chegavam a 4.541 e os suspeitos, a 1.214. A plataforma é atualizada por um monitoramento autônomo, realizado por mobilizadores e mobilizadoras regionais da Conaq, em parceria com o ISA. São apontados os casos positivos, suspeitos e os óbitos.
Os quilombolas argumentam que há muitas as dificuldades para obter informações completas nos seis mil quilombos do país. Só o governo federal, com sua estrutura nacional e por medidas impositivas aos aos órgãos de saúde, teria condições de fazer um amplo monitoramento dos dados.
Lideranças quilombolas dos municípios com maior número de óbitos de quilombolas nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste confirmam falta generalizada de assistência, de apoio do poder público para o monitoramento da pandemia, de testes e de medidas urgentes, como distribuição de alimentos e kits de higiene.
“Dentro das nossas comunidades, eu particularmente não vi nada de assistência dos municípios e do Estado. A única coisa que foi feita foram apenas orientações, mas isso foi uma coisa muito remota. O poder público nada fez pela gente”, diz Carlos Graças, morador do território quilombola de Jambuaçu, em Moju (PA). Com 43 quilombolas mortos e quase 2.040 infectados, o Pará concentra maior número de casos confirmados e óbitos da doença.
Ainda em Moju, na comunidade de São Sebastião, Guiomar Tavares relata a incerteza que aflige os moradores por causa da ausência de testes: “Foi bem difícil, tivemos várias pessoas com sintomas, mas nenhuma foi testada, então jamais vamos saber se era Covid ou não”.
Em outros municípios, lideranças também relatam a falta de exames e que muitos quilombolas com sintomas da doença tiveram de pagar do próprio bolso para saber se estavam contaminados. Luzia Cristina do Carmo, da Comunidade Boa Nova, no município de Professor Jamil (GO), diz que esta foi a solução para vários moradores. O exame no município chega a custar mais de R$ 200. A comunidade Boa Nova teve duas mortes pela doença.
Em Anajatuba (MA), que concentra 22 comunidades quilombolas e teve quatro quilombolas mortos, uma conquista do movimento local foi a inclusão, nos boletins epidemiológicos, das informações específicas sobre os quilombos.
“Uma coisa que a gente tem uma dificuldade muito grande em Anajatuba é a questão da água potável. Poucos quilombos têm poço artesiano e os que existem estão desmantelados, com bomba queimada e outros defeitos, e o governo não dá atenção”, diz Eliane Frasão, presidente da União das Associações Quilombolas das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Anajatuba (MA).
“Nenhuma assistência foi destinada para as comunidades quilombolas. E, se teve, não chegou aqui. O que nós tivemos de ajuda foi de ONGs, que enviaram cesta básica, álcool em gel, produtos de limpeza. Mas nada do Estado”, diz Adriano Gonçalves, do quilombo da Rasa, no município de Armação dos Búzios (RJ), que teve três mortes por Covid-19.
Rodrigo Marinho Rodrigues da Silva, do quilombo Ivaporunduva, em Eldorado (SP), explica que, por meio da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone), os quilombolas acionaram o Ministério Público e a Defensoria Pública para obrigar a Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo a disponibilizar testes e acompanhamento médico e formular um plano emergencial específico para as comunidades.
“O poder público está falho. Primeiro que não tem o diagnóstico de quantos foram realmente contaminados e nem a capacidade de acompanhar os que foram contaminados. Não teve testagem para todas as comunidades que foram contaminadas. Ficou difícil diagnosticar a situação das comunidades”, diz Silva. De acordo com ele, já foram contabilizados mais de 30 casos em quilombos do Vale do Ribeira, sendo 14 só na sua comunidade.
O Ministério da Saúde informou que “apoia profissionais de saúde e gestores locais, principalmente os que cuidam de populações mais vulneráveis, como quilombolas, para que haja o atendimento precoce da Covid-19”. A pasta argumentou que cabe aos gestores municipais as ações que atendam à população quilombola.
O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos afirma que atua no atendimento às comunidades quilombolas em situação de extrema vulnerabilidade em razão da pandemia. Informou que distribuiu cestas básicas a 171,2 mil famílias de comunidades tradicionais.
A Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro declarou que, em parceria com a Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Estado do Rio de Janeiro (Acquilerj), “desenvolve um trabalho de acompanhamento, monitoramento e divulgação dos casos de Covid-19 em comunidades quilombolas”. O órgão explicou que cabe às secretarias de Saúde municipais a realização de testes e exames nas comunidades e que divulgou, em maio, um guia específico com orientações sobre a Covid entre quilombolas, indígenas e outros povos tradicionais.
A Secretaria de Saúde do Pará (Sespa) afirma que criou um grupo de trabalho para o enfrentamento da pandemia nos quilombos com participações de órgãos estaduais, a Universidade Federal do Pará e a Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará (Malungu). Além disso, a Sespa informa que foram distribuídos 39 mil máscaras e 1.100 litros de álcool gel 70% à Malungu. Também teriam sido realizados atendimentos e exames nas comunidades de Moju, em julho e agosto.
A Secretaria de Saúde de Goiás informou que realiza quinzenalmente reunião para monitorar a Covid-19 nos quilombos, com governos municipais e lideranças quilombolas; que o acompanhamento dos casos é responsabilidade das secretarias municipais; e que não recebeu nenhum pedido específico de insumos e testes para os quilombos.