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Juvêncio Cardoso, do povo Baniwa, é professor de matemática e física na Escola Baniwa Eeno Hiepole, na comunidade de Canadá, na Terra Indígena Alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira (AM). Ele e seus alunos estão intrigados com o comportamento diferente do clima no rio Ayari, afluente do Negro que vem da Colômbia. Ao invés de repetir padrões, como época de sol e chuva, cheia e vazante, é como se a natureza resolvesse se rebelar, mudando radicalmente de comportamento.
A cheia recorde do Rio Negro registrada em Manaus esse mês na marca de 30 metros, a maior desde o início da medição em 1902, começou a dar seus primeiros sinais no início do ano, quando o tão esperado verão para a queima de novas roças não ensolarou as cabeceiras do Negro. “Muitas famílias não queimaram a roça no início desse ano porque não teve verão na época certa. Isso vai comprometer a segurança alimentar das famílias porque teremos uma lacuna no calendário do nosso sistema agrícola”, alerta Juvêncio.
*Até o dia 10.06 a régua do porto de Manaus marcava 30 metros
Um outro sinal que anunciava o evento extremo na observação de Juvêncio e outros pesquisadores indígenas que formam a Rede de Agentes Indígenas de Manejo Ambiental (Aimas) foi o sumiço da minhoca daracubi. Essa minhoca costuma se reproduzir nos solos dos igapós (florestas inundáveis) no início do ano e é usada pelos pescadores no tempo da piracema para fartas pescarias.
Cheia histórica no rio Negro põe em risco segurança alimentar de comunidades
“Na época que era para ter sol e água mais baixa no rio, o nível se mantinha em alta porque não parava de chover. Então não teve como ter reprodução de daracubi e isso acabou dificultando a pescaria. Em decorrência da enchente também não houve ambiente para o peixe fazer piracema. Esse é um fenômeno importante no ciclo da cadeia de subsistência indígena na região amazônica”, observou o Aima.
Além disso, com o nível do rio alto, também não teve como os pescadores construírem ou reformarem seus cacuris (armadilhas de pesca artesanal) nas beiras. “Por tudo isso, eu avalio que essa foi uma enchente de impacto sistêmico”, enfatiza Juvêncio. Ele considera que agora, cerca de um mês depois da maior alta no Ayari, as comunidades indígenas estão sentindo os impactos, que também incluem aumento de doenças, como a malária.
Toda estação do ano, todo nível de água dos rios, exige um manejo especial. Assim explicam os Aimas, que sistematizam nos estudos dos ciclos anuais, os conhecimentos práticos indígenas passados oralmente de geração para geração.
Esse manejo inclui práticas da agricultura, da pesca, da coleta de frutos, dentre outras atividades. “Tudo é um ciclo e o que estamos percebendo atualmente é que esse ciclo está mudando de padrão”, explica Juvêncio, que integra também o Programa de Mestrado Profissional em Rede Nacional para o Ensino das Ciências Ambientais na Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Aloisio Cabalzar, antropólogo do Instituto Socioambiental (ISA) e organizador do livro “Ciclos Anuais no Rio Tiquié – Pesquisas Colaborativas e Manejo Ambiental no Noroeste Amazônico”, trabalha há cerca de 30 anos nas terras indígenas da região. Cabalzar observa que os Aimas vêm trazendo uma série de relatos que demonstram desequilíbrios ambientais que não eram percebidos no passado.
“Juvêncio e outros Aimas estão observando que a enchente grande não é um fenômeno isolado, mas está associada a uma série de desequilíbrios que afetam diretamente as práticas de manejo ambiental nas comunidades indígenas. Essas práticas visam a segurança alimentar e relações saudáveis com os ciclos da vida, como ensinam os conhecedores indígenas mais velhos”, comenta Cabalzar.
Na escola Baniwa Eeno Hiepole (“Umbigo do Mundo”, em menção ao local de origem do povo Baniwa, em Uapui Cachoeira, no Ayari), os alunos estão pesquisando os impactos da cheia extrema nas comunidades, principalmente nas roças de mandioca. Juvêncio e outro professor, Eliseu Antônio (autor de fotos desta reportagem), estão indo a campo fazer estudos e registros da cheia, que foi a maior já registrada pelas comunidades do Ayari.
A partir das observações coordenadas por Juvêncio Cardoso, temos os seguintes dados no rio Ayari:
- 30 roças atingidas
- 18 famílias afetadas
- 315 toneladas de mandioca perdidas
- 6,2 mil latas de farinha deixarão de ser produzidas
- R$ 500 mil é a perda estimada nas roças de mandioca, pimenta, banana, cubio, cará e batata
As roças dos povos indígenas do Rio Negro fazem parte do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, reconhecido em 2010 como patrimônio imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Estão catalogadas, ao todo, mais de 300 variedades de plantas cultivadas pelos 23 povos indígenas que vivem na região há milênios, além de 32 espécies de peixes comestíveis, conforme dossiê.
No mapa abaixo estão identificadas 12 comunidades afetadas pela cheia na região da área de abrangência da Nadzoeri, que é a coordenadoria dos povos Baniwa e Koripaco na organização da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn). Além do Rio Ayari, também ao longo do Rio Içana e no Rio Cubate tiveram famílias afetadas pela enchente.
A Prefeitura de São Gabriel da Cachoeira, através da Secretaria de Assistência Social, está cadastrando as famílias afetadas pela cheia, seja pela perda de suas residências ou roças devido ao alagamento extremo.
A subsecretária da pasta, Rita Jane, do povo Baré, informou ontem no programa Papo da Maloca, na rádio FM local de São Gabriel da Cachoeira, que a prefeitura já registrou 78 famílias nos rios Negro, Uaupés e Ayari para receberem ajuda com alimentação.
Além disso, na cidade foram deslocadas famílias que tiveram suas casas interditadas pela cheia. No momento, segundo Rita, 15 famílias precisaram ser transferidas e o ginásio da Escola Irmã Inês Penha receberá temporariamente as famílias desabrigadas.
A Foirn também está cadastrando indígenas afetados pela cheia e fazendo um levantamento do impacto para ajudar com cestas básicas ou com a articulação e logística de doações de alimentos locais vindos de áreas não atingidas. A campanha “Rio Negro, Nós Cuidamos”, lançada pela Foirn na emergência da pandemia em 2020, também está recolhendo doações para segurança alimentar dos atingidos pela cheia.
É possível contribuir pelo site www.noscuidamos.foirn.org.br.