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Negligência e inoperância diante dos riscos do novo coronavírus, desde o início da pandemia. Omissão na liderança e na mobilização dos agentes públicos, cientistas, profissionais e instituições de saúde para enfrentá-la. Promoção intencional de aglomerações e de boicote às medidas de distanciamento social, mundialmente indicadas para o enfrentamento à pandemia. Desprezo pelo uso de máscaras e exposição de auxiliares, apoiadores e cidadãos, inclusive crianças, ao risco de contaminação. Não provimento de testes para diagnósticos, vacinas para imunização e insumos hospitalares indispensáveis para a atenção aos doentes. Difusão de informações falsas e de terapias e medicamentos ineficazes, causadores de efeitos colaterais. Promoção de instabilidade gerencial, lentidão na desintrusão de áreas indígenas invadidas.
Essa lista de crimes, praticados por Jair Bolsonaro, é menor do que a elaborada pelo chefe da Casa Civil, general Eduardo Ramos, para organizar a defesa do presidente junto à CPI instalada no Senado, que vai investigar as responsabilidades pela maior tragédia nacional em um século. Discutir se o nome disso é genocídio, morticínio ou assassinato em massa, pode ter alguma relevância técnica, mas não altera o caráter hediondo do personagem histórico Bolsonaro.
Tecnicamente, Bolsonaro pode alegar que não chacinou uma etnia específica, mas brasileiros de todas as raças e que, por isso, não poderia ser qualificado de genocida. Uma defesa minúscula diante de crimes maiúsculos. Porém, é mais do que legítima a indignação dos que o qualificam como genocida, pela contundência sintética dessa expressão, dada a situação tão inédita e inusitada que, na verdade, não há palavra que possa designá-la por inteiro. Tanto é que Bolsonaro está sendo formalmente acusado de genocídio em tribunais internacionais.
Sentindo-se atingido, Bolsonaro até tem o direito de processar quem o acusa, assim como a Justiça tem legitimidade para dirimir o conflito. O que Bolsonaro não pode é usar a Polícia Federal para investigar secretamente os seus críticos e opositores. No contexto geral do desmanche que ele promove nas instituições públicas, o mais grave e atentatório à democracia é o uso pessoal da Polícia Federal. Essa semana, Sônia Guajajara, coordenadora nacional da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a APIB, recebeu uma intimação da Polícia Federal para depor sob a acusação de ter chamado Bolsonaro de genocida numa websérie que denuncia a falta de atendimento e o avanço dos óbitos entre indígenas causados pela Covid-19. A investigação contra a Apib foi solicitada pelo presidente da Funai, Marcelo Xavier, que é delegado da Polícia Federal, e vem sendo feita desde o ano passado, sob sigilo e sem o conhecimento da entidade indígena. Vale lembrar que o atual ministro da Justiça, Anderson Torres, a quem caberia defender os direitos humanos, também é um delegado. A Polícia Federal e a Funai são vinculadas ao Ministério da Justiça.
Sônia Guajajara tem liderança reconhecida pela quase totalidade das organizações indígenas, de todas as regiões do país. Formada em letras e em enfermagem pela Universidade Estadual do Maranhão, Sônia foi candidata a vice-presidente em 2018, na chapa de Guilherme Boulos (PSOL). Sua atuação à frente do movimento indígena tem dado grande visibilidade à causa, dentro e fora do país, colocando-o na linha de frente da resistência aos retrocessos civilizatórios promovidos por Bolsonaro.
Os dados relativos ao impacto da pandemia sobre os povos indígenas vêm sendo contabilizados pela APIB desde o início da crise e incluem a população indígena urbana, que o governo não reconhece como prioritária. Os dados da APIB, assim como os oficiais, comprovam o forte impacto da pandemia sobre os povos indígenas. A APIB recorreu ao STF para obrigar o governo a apresentar um plano específico de combate à epidemia e a considerar prioritária a população indígena, inclusive urbana, o que ainda não foi feito.
A denúncia contra uma grande líder indígena indica o grau superlativo de desvio de funções da Funai sob Bolsonaro. A investida policialesca para calar Sônia Guajajara vem na esteira de outras tentativas similares contra o influenciador Felipe Neto e o ambientalista Márcio Astrini, recorrendo, inclusive, à Lei de Segurança Nacional. É uma ameaça contra todos nós, indígenas ou não, que nos opomos à necropolítica vigente.