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As Terras Indígenas (TIs) continuam sendo uma barreira contra o desmatamento. Entre agosto de 2016 e julho de 2017, elas concentraram apenas 2% de todos os desmates na Amazônia. O percentual coincide com o índice histórico: dos quase 784 mil quilômetros quadrados de florestas já devastados na região até hoje, 98% estão fora dessas áreas.
Os dados mostram, no entanto, que algumas delas estão em situação crítica: entre 2016 e 2017, dez TIs concentraram 75% de todo o desmatamento nessa categoria de área protegida (veja mapa, tabela e fichas ao longo do texto e todos as imagens na galeria ao final da reportagem).
A análise foi feita pelo Programa Monitoramento de Áreas Protegidas do ISA e leva em consideração 177 terras inteiramente mapeadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A estimativa está concentrada no chamado arco do desmatamento. No ano que vem será divulgado o mapeamento consolidado de toda a Amazônia, incluindo o conjunto de 419 TIs da região.
Em novembro, o ISA divulgou que o desmatamento total naquelas 177 TIs cresceu 32%, na comparação entre 2016-2017 e 2015-2016 (saiba mais). O fato chamou ainda mais atenção porque a taxa total da devastação amazônica, entre os mesmos períodos, caiu 16%, passando de 7.892 quilômetros quadrados para 6.624 quilômetros quadrados, segundo a estimativa preliminar do Inpe.
O ISA entrevistou representantes de organizações da sociedade civil que conhecem a situação das TIs mais desmatadas. Em muitos casos, como no centro e sudoeste do Pará e em Rondônia, houve uma intensificação de processos crônicos de invasão por causa da ausência ou ineficiência da fiscalização. Pelo mesmo motivo, em outros casos, como no sul do Amazonas, as frentes de desmatamento no entorno vinham se aproximando e adentraram as TIs.
Embora essas áreas continuem bloqueando os desmates, medidas e propostas contra o meio ambiente e os direitos indígenas que partem do governo Temer e do Congresso tornam o cenário incerto, a exemplo da ideia de se permitir o arrendamento das TIs (saiba mais), avaliam especialistas e organizações indigenistas.
“Se houver uma fragilização da legislação de proteção das Terras Indígenas, admitindo-se, por exemplo, a redução dessas áreas, assim como se houver um processo mais expressivo de redução de Unidades de Conservação (UCs) em várias partes da Amazônia, teremos seguramente a fragilização dessa função de barreira de contenção ao desmatamento”, analisa o sócio fundador do ISA Márcio Santilli. Ele acredita que, por enquanto, ações de fiscalização em áreas e regiões específicas podem reverter a situação.
O assessor do ISA Juan Doblas acredita que a situação atual é agravada pela descoordenação e falta de vontade política do governo. “Uma novidade dos últimos dois anos é a ausência de uma política específica para resolução de conflitos em TIs. O Estado não está querendo resolver os conflitos e, diante disso, a tendência é eles recrudescerem”, afirma.
A queda de recursos e a precarização da estrutura da Fundação Nacional do Índio (Funai) também são apontadas como fatores para o aumento do desmatamento nas TIs. O orçamento total do órgão caiu de mais de R$ 740 milhões para menos de R$ 540 milhões, entre 2013 e 2017, em valores corrigidos pela inflação. O orçamento atual fica próximo ao de dez anos atrás, também em valores reais. Em março, o presidente Michel Temer assinou um decreto que extinguiu 87 cargos comissionados, de 770 então existentes no órgão indigenista, quase 12% do total. Os escritórios regionais estão entre os setores mais atingidos.
A Funai não respondeu os pedidos de entrevista até o fechamento desta reportagem.
A frequência e a dimensão das operações do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) também são consideradas insuficientes. “Ao longo deste ano, o Ibama realizou operações em mais de 60 TIs”, diz a assessoria do órgão em nota enviada à reportagem .“A gestão das Terras Indígenas (TIs) no país é atribuição da Fundação Nacional do Índio (Funai), responsável pelo monitoramento e acompanhamento dos processos de invasão e eventual necessidade de desintrusão das áreas”, continua o texto. “A atuação do Ibama em TIs ocorre após análise de alertas de desmatamento enviados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e denúncias da Funai e de organizações indigenistas e de defesa dos povos indígenas. A fiscalização ambiental na Amazônia prioriza a atuação das equipes em regiões consideradas mais críticas e nos polígonos de desmatamento com maior potencial de evolução”, finaliza a nota.
A análise do ISA sugere que grandes projetos de infraestrutura continuam estimulando a imigração descontrolada e a capitalização de alguns setores econômicos, o que, por sua vez, promove mais desmatamento.
É o caso da campeã e vice-campeã da devastação, entre 2016 e 2017: as TIs Cachoeira Seca e Ituna-Itatá (PA). A primeira fica próxima à rodovia Transamazônica e ambas estão na zona de influência da hidrelétrica de Belo Monte. Desde 2011, com o início da construção da usina, as invasões e o desmatamento aumentaram, incentivados por políticos e grileiros.
Recentemente, a concentração fundiária vem empurrando pequenos posseiros para dentro da TI Cachoeira Seca. A retirada dos ocupantes ilegais arrasta-se há anos e o plano de proteção da área não sai do papel, ambas as medidas previstas como condicionantes do licenciamento da hidrelétrica. Juan Doblas comenta que o ritmo do desmatamento e das invasões varia ao sabor da presença dos órgãos do governo e das idas e vindas do processo de desocupação dos não indígenas. Ele afirma que o Ibama e a PF vêm combatendo o roubo seletivo de madeira, mas não as invasões de produtores rurais. Doblas concorda que os órgãos oficiais parecem aguardar o desfecho do longo processo de desintrusão.
Grileiros têm registrado Cadastros Ambientais Rurais (CAR) na TI Ituna-Itatá para tentar garantir posses na área, interditada para garantir a segurança de índios isolados, o que torna a situação ainda mais grave. Pequenos agricultores expulsos do reservatório de Belo Monte e que receberam indenizações e comerciantes locais são os principais invasores. Além disso, a prefeitura de Altamira também asfaltou a via de acesso principal à região, o que incentiva mais invasões. A TI deveria servir como barreira de proteção no caminho entre outras áreas protegidas e a Transamazônica.
A paralisação da desocupação dos não índios também seria uma das razões para o aumento da derrubada da floresta na TI Apyterewa, a sexta TI mais desmatada em 2016-2017, também no centro do Pará. Doblas diz que o loteamento político do escritório local do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), responsável por relocar os produtores rurais, está prejudicando o processo.
“Tanto na TI Apyterewa quanto na Cachoeira Seca, o que há é uma perda do controle territorial da parte do Estado, por causa da inação do próprio Estado em relação aos conflitos”, completa.
O norte de Rondônia, onde estão as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, também apresenta altos índices de desmatamento há anos. O Estado abriga três das dez TIs mais desmatadas em 2016-2017 (veja tabela).
Ivaneide Bandeira Cardozo, coordenadora de projeto na Kanindé - Associação de Defesa Etnoambiental, denuncia que, nas TIs Uru-Eu-Wau-Wau e Karipuna, grileiros e madeireiros ilegais estão usando os próprios postos da Funai como base para suas atividades. O órgão não teria recursos nem para manter os escritórios funcionando. Os criminosos também estariam cooptando algumas lideranças indígenas, o que não acontecia até pouco tempo.
Cardozo conta ainda que, por causa das eleições do ano que vem, políticos locais estariam incentivando as invasões e prometendo regularizá-las. Ela acredita que essa atitude foi estimulada pela redução da Floresta Nacional de Bom Futuro, em 2010, para acomodar e regularizar invasores.
Para Cardozo, o desmatamento aumentou no conjunto de TIs e UCs principalmente no leste do Estado, na fronteira com Mato Grosso. “Se você for em campo, não há nenhuma área que não esteja com invasão, seja de grileiro, madeireiro ou pecuarista”, avalia. Ela aposta que, apesar da queda estimada em 9% do índice do desmatamento total em Rondônia neste ano, o roubo seletivo de madeira aumentou, o que pode projetar a ampliação dos índices no futuro imediato - a extração seletiva de árvores em geral precede o “corte raso”, a retirada completa da vegetação, único tipo de desmatamento captado pelo levantamento do Inpe divulgado agora.
Há suspeitas de que um atentado ocorrido, há alguns dias, contra lideranças indígenas Paiter Suruí, em Cacoal (RO), seja uma represália de madeireiros ilegais expulsos da TI Sete de Setembro, a sétima TI mais desmatada na Amazônia entre 2016 e 2017 (leia aqui).
A escala e a velocidade da destruição da floresta nas TIs também chamam a atenção. Os criminosos estão usando tecnologias e equipamentos de última geração. Os quase 900 hectares desmatados na TI Kayapó, no sudoeste do Pará, em 2016-2017, seriam fruto de uma nova onda garimpeira, promovida pelo desemprego e o aumento do preço do ouro, segundo Adriano Jerozolimski, coordenador executivo da Associação Floresta Protegida. Ele tem informações de que, em alguns momentos, cerca de 120 retroescavadeiras de grande porte estariam funcionando 24 horas por dia, no nordeste da área.
Jerozolimsk acrescenta que a base dos criminosos é Ourilândia do Norte. Os garimpeiros estariam cooptando e subornando lideranças indígenas. Madeireiros ilegais aproveitam as estradas abertas pelo garimpo para saquear a floresta.
Na avaliação de Jerozolimski, as operações de fiscalização do Ibama não têm sido suficientes. Um ou dois meses depois, os criminosos acabam voltando. “O período de ausência de Estado é tão grande que, na percepção das populações locais, o ilícito passa a ser banalizado. As pessoas passam a achar aquilo uma atividade normal. Quando o Estado vem e age, há uma reação para defender o ilícito”, comenta. Ele lembra que recentemente garimpeiros fecharam a PA-279, principal rodovia da região, com apoio de políticos, em protesto contra as ações do Ibama.
O sul do Amazonas é uma das regiões com frentes de desmatamento mais dinâmicas da Amazônia, há alguns anos, mas, até meados 2016, a TI Peneri-Tacaquiri, a nordeste de Boca do Acre, estava praticamente intocada. Uma fonte local conta, porém, que o desmatamento no município vinha se intensificando na região, até que atingiu a área através de um ramal aberto irregularmente nos últimos meses.
Os dados do Inpe revelaram um “buraco” de cerca de 800 hectares na floresta na TI. O fato de se tratar de uma derrubada contínua, identificada como um único polígono nas imagens de satélite, é um indício de que o responsável seja uma única pessoa. O enorme desmate teria sido produzido em 15 dias, segundo a mesma fonte. Ainda de acordo com ela, o objetivo é estabelecer fazendas de gado, financiadas por um grande esquema de empresários do Acre, mas cuja base é Boca do Acre. Há suspeita de envolvimento de políticos e servidores públicos.
O Ibama tem realizado operações na região, mas elas não estariam conseguindo frear as derrubadas. A precariedade da Funai agrava a situação. Dez funcionários do órgão indigenista são responsáveis por cuidar de 27 TIs em toda a região, no Médio Rio Purus, somando seis milhões de hectares - território maior que o da Paraíba.
As notícias sobre anistias para crimes ambientais e grilagem e propostas contra as áreas protegidas defendidas em Brasília também estariam criando um clima propício ao desmatamento. “De 2015 para cá, isso ficou bem mais evidente. Depois de diversas mudanças no Executivo, o ambiente é bem mais permissivo e difícil para os técnicos e fiscais do Ibama e da Funai”, analisa a fonte.