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Territórios quilombolas no Vale do Ribeira (SP) têm sobreposições de imóveis privados

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Levantamento do ISA e da Conaq revelou que 43% dos 29 territórios quilombolas na região apresentam registros irregulares de Cadastro Ambiental Rural (CAR)
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Por Andressa Cabral Botelho e Tainá Aragão

Um estudo do Instituto Socioambiental (ISA) e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) mostrou que a sobreposição de Cadastros Ambientais Rurais (CARs) de imóveis privados incide em 43% da área total de 29 territórios quilombolas no Vale do Ribeira, em São Paulo. Segundo a análise, 393 imóveis particulares estão sobrepostos. No total, existem 33 comunidades quilombolas no Ribeira, sendo que quatro ainda não tiveram apoio da Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) — órgão responsável pelas políticas agrária e fundiária no estado.

O quilombo com o maior número de registros de CAR de terceiros em sobreposição foi Abobral Margem Esquerda, com 68 registros. Destaca-se, também, os casos de Poça, com 35 registros em sobreposição, e Reginaldo, com 37 registros em sobreposição. Nos quilombos de Aldeia, Bombas, Mandira e Peropava, a área de sobreposição de CARs particulares é superior a 90% dos territórios quilombolas, como aponta o mapa:



Este cenário se deve aos diversos obstáculos encontrados pelos quilombolas para a implementação do CAR nos territórios do Vale do Ribeira. Segundo os pesquisadores, há um descompasso no registro entre as propriedades privadas rurais e quilombolas, uma vez que o CAR foi estruturado para atender demandas relativas a imóveis individuais, não dos territórios coletivos quilombolas.

Quando o novo Código Florestal foi aprovado, em 2012, as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira precisaram se adequar à nova norma, que tornava obrigatório o registro no CAR. O código prevê que, no caso da agricultura familiar e de povos e comunidades tradicionais, incluindo quilombolas, o poder público tem a obrigação de apoiar a inscrição da agricultura familiar e dos territórios coletivos no CAR.

Mas não é o que acontece na prática.

Com o código florestal em vigência, e em função da pressa para executar suas atividades produtivas, os quilombolas do Ribeira aceitaram a forma e o modelo proposto pelo Itesp para o registro do CAR de seus territórios. Pelo modelo proposto, seria obrigatório inscrever todas as feições ambientais internas, o que não deveria ser exigido para territórios quilombolas.



Havia também a pressão de bancos, responsáveis por liberar financiamentos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e que passaram a exigir o CAR para créditos rurais.

Contudo, mesmo o cadastro sendo feito em todo território e o Itesp ciente da existência da população tradicional, a lógica permaneceu como a de um imóvel privado. Na prática, fazer a inscrição das feições ambientais nos territórios quilombolas exatamente como se faz em uma área privada limita a gestão tradicional quilombola.

Das 33 comunidades quilombolas existentes no Vale do Ribeira, 29 tiveram apoio do Itesp para inscrição no CAR. O órgão, até o momento, não prestou assistência técnica a comunidades quilombolas do Ribeira que, a exemplo da de Rio das Minas, localizada em Cananéia, contam com certidão de autorreconhecimento da Fundação Cultural Palmares, mas ainda não foram formalmente reconhecidas pelo Itesp. A Fundação Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura, é o órgão federal responsável pela certificação de comunidades quilombolas.

Com isso, as autoridades responsáveis pela realização do cadastro ignoram declaradamente o direito ao autorreconhecimento da identidade coletiva, previsto no artigo 1º da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre povos indígenas e tradicionais.

“As principais dúvidas das comunidades quilombolas estão relacionadas à necessidade de inscrever a integralidade do território, mesmo que ainda não tenha sido titulado, assim como sobre a necessidade de cadastrar todas as feições ambientais internas. E essas e outras dúvidas mostram que ainda é necessário fazer atividades de formação com quilombolas no tema do CAR”, aponta Fernando Prioste, advogado do ISA que atua no Vale do Ribeira e co-autor da nota. Recentemente, ele tem realizado conversas com quilombolas da região para sanar algumas questões sobre o cadastro.



Conforme salienta a nota, “nessas situações, o Estado tem o dever de apoiar a comunidade na solução dos conflitos, inclusive por ser o Estado quem institucionalizou a obrigatoriedade do CAR, quem tem a competência para a validação dos registros e pela titulação dos territórios".

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Conjunto de violações

Além da obrigação de inscrição de feições internas dos territórios quilombolas no CAR, que já viola e restringe a gestão dos territórios, outras violações são observadas.

Um exemplo é o cálculo da área de preservação permanente para fins de instituição de reserva legal. A nota técnica aponta que os órgãos de estado não dialogam de forma correta com as comunidades quilombolas, indicando a possibilidade de somar as Áreas de Preservação Permanente (APPs) para que se registre área de reserva legal.


O que é o Cadastro Ambiental Rural?

Em todo o país, aqueles que possuem um imóvel em área rural - seja de área privada ou território de povos tradicionais - precisam ter o CAR. Por meio dele, as organizações que trabalham com o meio ambiente podem monitorar e planejar o manejo dessas áreas rurais.

Assim, o CAR integra informações sobre o território, áreas de preservação permanente (APP), áreas de uso restrito (UR), de reserva legal (RL), de remanescentes de florestas e demais formas de vegetação nativa, das áreas consolidadas (AC) em APP, entre outras. Entretanto, o registro de territórios de povos e comunidades tradicionais no CAR deverá ser feito de forma distinta dos imóveis rurais particulares.

Os imóveis inscritos passam por uma avaliação feita por organizações estaduais de meio ambiente (OEMA), tendo como parâmetro o novo Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) que, além de estabelecer normas gerais de proteção da vegetação nativa, prevê, entre outros pontos, a situação da adequação ambiental a partir do CAR.

Também em 2012 foi criado o Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (SiCAR), para gerenciar essas informações de âmbito nacional. Entretanto, alguns estados, como Bahia, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Tocantins optaram por ter um sistema próprio de cadastramento e integrar os sistemas com o SICAR.

O novo Código Florestal e a instituição do CAR não beneficiam quilombolas do Vale do Ribeira quanto ao manejo de biodiversidade que esses grupos fazem, pois, na prática, eles esbarram em uma série de burocracias que dificultam a gestão tradicional e coletiva dos territórios. Dessa forma, as comunidades quilombolas precisam se adequar a uma lógica de imóveis privados, ignorando o uso tradicional e coletivo da terra e manejo da biodiversidade.

Outro exemplo de obstáculo é o fato de alguns territórios quilombolas não possuírem a inscrição de áreas de uso consolidado existentes em APPs.

Tais áreas de uso consolidado ocorrem historicamente, não comprometem as funções ecológicas das APPs e encontram permissão na legislação.

Deixar de inscrever as áreas de uso consolidado prejudica os manejos tradicionais e a manutenção das moradias quilombolas localizadas em APPs.

Como saída, o estudo aponta que o estado de SP precisa revisar os CARs do Vale do Ribeira e cancelar os registros particulares que estão sob os territórios tradicionais.

Por sua vez, o Itesp e a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Sima) devem adaptar o atual sistema para registro dos quilombos.

Diante deste contexto e das dificuldades históricas no âmbito da questão socioambiental no estado de São Paulo, o movimento quilombola reforça a demanda por uma aproximação do que envolve o Serviço Florestal Brasileiro e as organizações quilombolas.

A Conaq articula parceiros para garantir o direito ao registro adequado às necessidades quilombolas, como explica Francisco Chagas, mobilizador estadual da Conaq no Piauí:

“Neste momento, é importante fazer esse debate sobre o CAR para desconstruir o racismo ambiental tendo o CAR como um instrumento importante. É preciso que os estados que têm esquema próprio de cadastro tenham essa abertura com a Conaq e parceiros para que possamos dialogar e abrir caminhos para que os nossos quilombos sejam cadastrados coletivamente dentro da plataforma do CAR”.

“A obrigatoriedade de registro dos territórios coletivos no CAR não veio acompanhada de soluções para as sobreposições de registros do CAR de imóveis particulares. E não há perspectiva de que os territórios tradicionais sejam titulados antes da validação do CAR. Assim, não há, no momento, qualquer perspectiva para resolver os problemas advindos das sobreposições”, apontou o estudo.

Assista ao vídeo com explicações de Francisco Chagas, da Conaq-PI

Situação nacional

No Brasil, atualmente há cerca de seis mil territórios, mas apenas 3.476 foram certificados pela Fundação Cultural Palmares. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que se ocupa da regularização fundiária, titulou somente 46 territórios.

Órgão estaduais de terras, por sua vez, expediram títulos para apenas 126 territórios quilombolas. Ainda constam 1.805 processos administrativos de titulação de quilombos em tramitação no Incra.

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