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Vitória caiçara: justiça de SP decide que casa de comunidade na Jureia fica

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Em votação unânime, Câmara de Meio Ambiente do TJ-SP decide em favor dos caiçaras; família vive na única casa que sobreviveu a despejo
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Edmilson de Lima Prado, Karina Ferro Otsuka e seu bebê, Martim Ferro do Prado, amanheceram na quinta-feira (16/07) sem saber se poderiam permanecer em sua casa, na comunidade caiçara Rio Verde e Grajaúna, na Jureia (SP). Símbolo mais recente da luta caiçara pela (re) existência, a casa da família Prado, que vive no local há mais de 200 anos, sobreviveu a um despejo ano passado que destruiu outras duas residências tradicionais. Porém, em decisão histórica da 1ª Câmara Reservada ao Meio Ambiente do Tribunal de Justiça de São Paulo, ficou decidido que a casa -- e os Prado -- ficam.



“Moro no Rio Verde desde que nasci e sempre ouvi falar de resistência. Meus avós, pais e tios diziam que nosso lugar é lindo de viver, mas tem muita luta”, contou Edmilson, 33 anos. O caiçara esteve à frente das articulações na defesa do direito de permanência dele e da família no território, disputado pelo poder público. “Dizem que não existimos. Como pode uma pessoa que nunca foi ao lugar dizer que aqui não tem ninguém? Na minha infância eu pensava ‘será que eu não sou ninguém?’ Se eu nasci e cresci aqui!”, questionou.

O processo judicial começou após a Fundação Florestal – órgão da Secretaria Estadual de Infraestrutura e Meio Ambiente de São Paulo – utilizar o instrumento da auto tutela possessória administrativa e demolir duas residências de primos de Edmilson, também caiçaras, em julho de 2019.

As autoridades se escudaram no argumento de que, pelo fato de a comunidade estar na Estação Ecológica Jureia-Itatins, Unidade de Conservação (UC) de “proteção integral” com restrições sobre ocupação humana, seus integrantes deveriam desocupar a área. O resultado dessa política vem sendo desastroso para as comunidades caiçaras nos últimos 30 anos. Segundo dados da própria Secretaria do Meio Ambiente a partir do Cadastro Geral de Ocupantes de 1990, 91% da população originária foi expulsa.

Em julho do ano passado, o juiz Guilherme Henrique dos Santos Martins, da 1ª Vara da Comarca de Iguape (SP), reconheceu em decisão liminar o caráter de comunidade tradicional da família e determinou que a Fundação Florestal “se abstivesse de executar a demolição da casa”. O estado de São Paulo questionou a decisão, que foi objeto do julgamento realizado na semana passada no TJ-SP e que deu ganho de causa aos caiçaras.

“A decisão da justiça dá um fôlego para a luta. Mostra que estamos no caminho certo”, afirmou Edmilson após o deferimento da liminar. “Estudos e documentos comprovam nossa presença histórica. Não quero que meu filho sofra com a pressão do estado, com a solidão ao ver os amigos, familiares e conhecidos indo embora para a cidade e ficando doentes”, ressaltou. “Muitas pessoas que conheci morreram de tristeza e raiva por terem abandonado suas vidas. E as pessoas ainda perguntam por que a gente não quer sair”.

De acordo com Andrew Toshio Hayama, defensor público estadual que atua na ação, o reconhecimento pelo Poder Judiciário de direitos caiçaras em uma Estação Ecológica “demonstra que não há, do ponto de vista normativo, confronto nem hierarquia entre interesses comunitários e ambientais”. Para ele, a decisão sinaliza a necessidade de a política ambientalista respeitar, “de uma vez por todas”, a existência de povos e comunidades tradicionais, sem importar onde estejam e considerando Terras Indígenas e Territórios Tradicionais como autênticos espaços ambientalmente protegidos.

Direito à (re) existência

Cristina Adams, bióloga e pesquisadora da USP (Universidade de São Paulo), comentou a decisão da Justiça pontuando que a presença de comunidades caiçaras “permite avançar em direção a projetos de co-construção de conhecimento”, modelo que, segundo ela, “é o que há de mais avançado para a gestão de sistemas socioecológicos”, conforme apontado pelo Painel Intergovernamental para Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES).

“No Brasil, a Arqueologia e a Ecologia Histórica vêm dando uma grande contribuição à ciência ao mostrar que nossas florestas e outros ecossistemas nem sempre são sistemas exclusivamente naturais, sendo influenciadas, no passado e/ou no presente, por populações humanas que lá viveram ou vivem”, argumentou.

Segundo Adams, o caso da Jureia é emblemático, pois o território vem sendo reiteradamente retratado como uma área “natural relativamente desabitada, coberta por uma floresta intocada, o que já sabemos não ser verdade”. No entanto, essa condição não diminui a importância biológica para a conservação da biodiversidade, afirmou a professora. “Pelo contrário: só a torna mais rica e abre uma série de novas possibilidades de pesquisa nos campos da Ecologia e da Biologia da Conservação, que avançaram muito desde que a estação ecológica foi criada.”

Em nota técnica, o Instituto Socioambiental (ISA), que atua na região há mais de 20 anos, reforçou que existem diversos estudos que comprovam “não apenas a ocupação centenária na Jureia, mas também que a família que corre risco de despejo forçado é uma de suas principais representantes” e, portanto, deve ter seu direito à permanência respeitado.

Por enquanto, Edmilson, Karina e o pequeno Martim, que nasceu em meio à disputa com o poder público, respiram aliviados. O capítulo mais recente da luta pela casa da comunidade caiçara Rio Verde e Grajaúna terminou em comemoração. Mas a batalha ainda não chegou ao fim: a ação seguirá seu trâmite, mas a comunidade vai poder dar continuidade ao diálogo sem medo de demolição por agentes do estado. Já a situação dos primos, Heber do Prado Carneiro, Vanessa Muniz Honorato, Marcos Venícius de Souza Prado e Daiane Neves Alves, ainda é bastante preocupante depois da demolição de suas casas.

Os Prado prometem seguir em resistência. “Sofremos com a pressão do estado há mais de 40 anos. Imagine não ter a liberdade de ser quem você é?”, concluiu Edmilson.

Ivy Wiens e Marina Terra
ISA
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