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Waimiri Atroari não são contra linhão, mas exigem consulta e compensações

Em entrevista ao ISA, lideranças indígenas reforçam que não são responsáveis pelo atraso de obra entre RR e AM e que governo tem se recusado a dialogar com comunidades
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Numa conversa rápida, é fácil perceber como o trauma do genocídio ainda está marcado na memória dos índios Waimiri Atroari. São essas lembranças que voltaram a assaltá-los após o governo divulgar, no fim do mês passado, que pretende publicar um decreto para viabilizar a construção de uma linha de transmissão em suas terras (RR/AM) - com ou sem sua concordância.

Os Waimiri Atroari foram reduzidos a apenas 350 pessoas, após a morte de mais de 2,5 mil deles, em função das consequências da construção da BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, e das violências praticadas pelo governo militar para dobrar sua resistência à obra, nos anos 1970. Só depois de quatro décadas, conseguiram se recuperar e hoje somam mais de duas mil pessoas.

O linhão foi classificado como de “interesse da Política de Defesa Nacional” e “alternativa energética de cunho estratégico” numa reunião do Conselho de Defesa Nacional (CDN), em 27/2. Trata-se do primeiro passo para a publicação do decreto. O governo divulgou que o presidente Jair Bolsonaro assinaria a norma até o fim do mês passado, mas ele ainda não o fez. A assessoria da Casa Civil respondeu à reportagem que “não há previsão de decreto”.

A consulta prévia às comunidades indígenas sobre qualquer medida que afete suas terras está prevista na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil. Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) vêm confirmando a aplicação do tratado em várias decisões. Já a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas fala na necessidade do "consentimento" dessas populações para esse tipo de obra.

O governo afirma que o impacto ambiental sobre a Terra Indígena (TI) Waimiri Atroari seria mínimo, pois o linhão acompanharia o eixo da BR-174. No entanto, será necessária a implantação de 250 torres de transmissão, ao longo de 125 km dentro da área. Cada torre terá uma base de quase 50 por 50 metros, devendo manter uma distância de segurança da estrada, além de acessos permanentes para manutenção, com o que a obra e o desmatamento exigido irão muito além da faixa de domínio da rodovia.

“A energia seria levada de Manaus a Boa Vista, mas o projeto não prevê o suprimento de eletricidade para os índios e para outras comunidades da região”, adverte Márcio Santilli, sócio fundador do ISA. "O benefício seria inegável para a população de Roraima, mas os índios ficariam com os impactos sem ter qualquer contrapartida, o que - obviamente - requer compensações”, completa.

A administração Bolsonaro argumenta que a crise na Venezuela agravou as falhas no fornecimento de energia à Roraima, único Estado ainda não conectado ao Sistema Interligado Nacional (SIN). Por outro lado, o governo venezuelano afirma que Brasília não vem pagando a energia fornecida para atender às sanções econômicas impostas pelos EUA ao regime de Nicolás Maduro. Além disso, o Ministério de Minas e Energia (MME) informa que tem condições de garantir o abastecimento de Roraima por meio de termelétricas e que não há risco de desabastecimento.

Temor de nova tragédia

A reunião do CDN ocorreu no mesmo dia em que os Waimiri Atroari falaram à Justiça pela primeira vez sobre os horrores sofridos há mais de 40 anos. Realizada na TI Waimiri Atroari, a audiência foi realizada como parte da ação em que o Ministério Público Federal (MPF) exige reparação aos índios e um pedido de desculpas do Estado. Nos relatos, roçados e locais sagrados destruídos por tratores, helicópteros que sobrevoavam aldeias despejando veneno e explosivos, ataques a tiros, degolações.

O temor dos Waimiri Atroari é que ocorra uma nova tragédia em função da incapacidade do Estado de mitigar e impedir os impactos que toda grande obra costuma provocar na Amazônia: imigração descontrolada, disseminação de doenças, aumento da violência, garimpo, conflitos e invasões de terras.

“Ficamos todos preocupados. Todos nos perguntamos: vai se repetir o que aconteceu na década de 70?”, questiona Marcelo Euepi Atroari. Ele reforça que os índios exigem apenas as compensações devidas pelos impactos da implantação do linhão e que seja respeitado seu direito à consulta.

“O governo mesmo não fala da compensação. Só quer passar a linha”, adverte. Ele lembra que o desmatamento exigido pelo empreendimento - ainda não devidamente estimado pelo governo - pode afetar áreas que são fonte de caça, frutas, materiais de construção e matérias-primas. Marcelo assegura que os índios nunca impediram a implantação do projeto e que os responsáveis por ele não ter saído do papel ainda são o governo, que se nega a dialogar com as comunidades, e os técnicos responsáveis, incapazes de realizar estudos e levantamentos consistentes.

“Nós não somos contra o linhão. Queremos estudar juntos, para que não fique ruim para o índio, o branco, o governo. Temos de ter uma parceira para que o resultado seja positivo para nosso lado”, completa Tuwdja Atroari. Ele ressalta que os indígena elaboraram um protocolo de consulta há mais de uma ano e que a comunidade exige que ele seja respeitado.

Junto com Mário Parwé Atroari, os dois estiveram em Brasília, nesta semana, e concederam entrevista ao ISA. Eles foram à Procuradoria-geral da República e à Câmara, buscando apoio à luta em defesa de seus direitos. A procuradora-geral de República, Raquel Dodge, comprometeu-se a enviar um ofício ao governo reforçando a necessidade da consulta (veja vídeo abaixo). As pressões sobre os indígenas partem de várias frentes (saiba mais).

Julgamento

No dia 27/3, o Tribunal Federal da 1ª Região, em Brasília, vai decidir sobre o recurso da União contra uma sentença de 2016 que anulou o leilão e a licença prévia do linhão. A sentença está suspensa por outra decisão do STF, mas, em todo caso, sua confirmação pela Justiça Federal, na questão de mérito, reforçaria a necessidade da oitiva às comunidades.

A resolução do CDN baseia-se no polêmico Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU). A norma reproduz o acórdão da decisão do STF sobre o caso da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol (RR), de 2009. “O usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional; a instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico, a critério dos órgãos competentes (Ministério da Defesa e Conselho de Defesa Nacional), serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI”, afirma uma das condicionantes da decisão de 2009.

“O STF já decidiu várias vezes que as condicionantes do julgamento sobre a TI Raposa-Serra do Sol não se aplicam automaticamente a outros casos”, afirma Juliana de Paula Batista, advogada do ISA. “O interesse nacional não pode estar divorciado da garantia da sobrevivência física e cultural dos índios e dos seus direitos fundamentais”, reforça.

O MPF considera o parecer da AGU inconstitucional e já pediu o sua revogação. “O governo declarar que a obra é de interesse da segurança nacional, para mim, isso aumenta o rigor do cumprimento da lei, da Constituição e da Convenção 169 da OIT. E não o diminui. O governo deve se empenhar ainda mais em respeitar o direito indígena porque é um caso de segurança nacional”, argumenta o procurador da República Antônio Carlos Bigonha.

ISA
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