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Indígenas da Bacia do Xingu reuniram-se para discutir os impactos e estratégias de luta frente à Ferrogrão, empreendimento ferroviário que pretende cortar as bacias dos rio Xingu e Tapajós. O encontro, realizado entre os dias 1 e 2/3, em Brasília, promoveu o debate entre as lideranças indígenas das regiões de impacto da ferrovia e procuradores do Ministério Público Federal.
Os xinguanos exigem que seu direito à Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado (CCLPI) seja assegurado, assim como o dos demais povos tradicionais que ali vivem. “Estamos atentos e unidos. O governo quer tirar o nosso direito de questionamento e participação, mas não vamos deixar”, afirmou Patxon Metuktire, do povo Kayapó.
Em carta entregue ao Ministério Público Federal (MPF), os xinguanos reiteram: “em outros empreendimentos os nossos direitos nunca foram considerados e as obras foram construídas e colocadas em operação a revelia de nossos direitos. Desta vez queremos que seja diferente e que nossa voz seja escutada e respeitada desde o início do processo”. Em uma articulação inédita nos processos de construção de grandes empreendimentos, os povos indígenas estão reivindicando seu direito à voz ainda na fase atual de planejamento, a da concepção do projeto.
“Geralmente o diálogo com as populações afetadas se dá lá na frente, quando já está tudo decidido. No caso da Ferrogrão, existe a possibilidade deste diálogo ocorrer na fase de planejamento, diferente do que ocorreu em Belo Monte e em outros empreendimentos que resultaram em desacertos graves e remendos lamentáveis de ações mitigatórias. Devemos aproveitar essa oportunidade para fazer diferente”, atenta André Villas-Bôas, secretário executivo do ISA.
Os xinguanos estão organizados na Rede Xingu +, articulação que reúne indígenas e povos tradicionais para a defesa do Corredor Xingu de Diversidade Socioambiental. “Estamos construindo a ideia de lutar juntos. Com a união de todos no Xingu +, temos mais força”, afirmou Doto Takak Ire, do Instituto Kabu.
“Também estamos juntos com os nossos parentes do Tapajós”, lembrou Doto. Os xinguanos escreveram uma carta afirmando sua união com os indígenas e povos tradicionais que vivem na bacia do rio Tapajós, que também serão afetados pelo traçado da ferrovia. No texto, propõem a construção de uma agenda de encontros para discutir estratégias conjuntas de atuação.
Com quase mil quilômetros de extensão, partindo de Sinop (MT) ao porto de Miritituba (PA), o projeto visa consolidar o novo corredor ferroviário de exportação do Brasil pelo Arco Norte. A Ferrogrão faz parte do corredor logístico que inclui os terminais portuários de Miritituba, a hidrovia do Tapajós, entre Itaituba e Santarém, e os Portos de Vila do Conde no Pará e Santa Ana, no Amapá.
Segundo os estudos de Viabilidade Técnica publicados pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), o traçado da Ferrogrão impactará mais de 20 áreas protegidas, entre Terras Indígenas e Unidades de Conservação. Paralela à BR-163, a ferrovia deve acirrar conflitos fundiários e potencializar os impactos socioambientais da rodovia ainda latentes na região, além de promover novas mudanças no meio ambiente e no modo de vida dos povos que ali vivem.
Durante o encontro, os indígenas destacaram as principais mudanças que já têm atingido os povos indígenas e comunidades tradicionais. Ianukula Kaiabi, da Associação Território Indígena do Xingu(Atix), alerta que a construção da Ferrogrão coloca as áreas protegidas em risco: “com o aumento da produção de grãos, vai crescer a demanda por novas áreas. Assim vai aumentar a pressão sobre as UCs e TIs”.
Ianukula também aponta que a demanda por mais terras para produzir milho e soja pode inviabilizar a demarcação das Terras Indígenas da região: como a TI Jatobá, reivindicada pelos Ikpeng, Batelão, dos Kawaiwete. e Kapot Ninhore, do povo Kayapó. Em 2020, prevê-se que a demanda total de carga da ferrovia alcance 25 milhões de toneladas, número que poderá chegar a 42,3 milhões, em 2050.
“Os impactos da ferrovia são em cadeia, ou seja, a valorização de estradas vicinais para escoamento da produção, por exemplo, vai trazer para próximo das aldeias a violência, o comércio ilegal de madeira, garimpos, etc”, diz o texto da carta entregue ao MPF.
A possível implementação de uma estação de carga na cidade de Matupá, como previsto nos estudos, deve aumentar significativamente a pressão para o asfaltamento da rodovia MT-322 e construção de uma ponte sobre o rio Xingu, no trecho que atravessa as Terras Indígenas Capoto Jarina e o Parque do Xingu. A rodovia é a única via terrestre que corta o corredor de áreas protegidas do Xingu e conecta a região de produção de grãos do leste com a região oeste da bacia do Xingu. Seu asfaltamento beneficiaria município de Querência e seu entorno, segundo maior polo de produção de grãos do estado.
Após intensa pressão dos indígenas e organizações parceiras, o diretor geral da ANTT, Jorge Luiz Macedo Bastos,se comprometeu, em audiência pública realizada em dezembro do ano passado, a fazer a consulta nos moldes da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Segundo ele, isso aconteceria antes do encaminhamento do processo ao Tribunal de Contas da União (TCU), o próximo passo da concessão da ferrovia.
Há três semanas, no entanto, em uma reunião com os Kayapó, a ANTT alegou que não dispõe de verba nem tempo para realizar consultas com todos os povos interessados. A expectativa é que até o início de abril a o processo seja encaminhado para o TCU, quebrando o compromisso feito. “Queremos construir em conjunto estratégias legais e políticas para cobrar o direito de Consulta, caso não houver o cumprimento da promessa”, alertam os xinguanos na carta.
O procurador Paulo de Tarso, que atua na região de Itaituba (PA), afirmou que o MPF segue alerta: “Temos um acompanhamento constante da questão. No meu ponto de vista, a Ferrogrão é o projeto com maior potencial de impacto no Brasil hoje. Mo MPF acompanha de perto e está alerta aos próximos passos do governo”.
Estudos da Estação da Luz, empresa contratada pela ANTT para fazer os estudos de viabilidade técnica, preveem um valor de R$ 390 milhões para as compensações socioambientais. Isso corresponde a apenas 3% do total da obra - estimada em mais de R$ 12 bilhões.
Além de não ter apresentado a memória de cálculo que justifique esse montante de recursos, o governo prevê que o dinheiro seja gasto apenas durante os primeiros dez anos, sendo que a concessão está prevista para 65 anos. Portanto, 55 anos de operação ficarão descobertos e sem qualquer recurso previsto para medidas de prevenção, mitigação ou compensação dos impactos socioambientais.
Em janeiro de 2018, o ISA encaminhou uma nota técnica à ANTT questionando sobre as irregularidades do processo de participação social pela ausência de consulta e com relação aos custos socioambientais projetados para o empreendimento. A ANTT ainda não respondeu aos esclarecimentos solicitados.