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Na mesma semana em que o aumento de focos de incêndios florestais na Amazônia foi notícia em todo o mundo, o governo Bolsonaro e a bancada ruralista resolveram incentivar ainda mais a devastação. Com articulação e apoio de ambos, o Senado aprovou, nesta quarta (21), a Medida Provisória (MP) 881/2019, com alterações na legislação ambiental que vão facilitar o desmatamento. O texto já tinha passado pela Câmara e segue agora à sanção presidencial.
A chamada “MP da liberdade econômica” tem o pretenso objetivo de diminuir burocracias e regulamentações para incentivar o crescimento econômico. De acordo com a oposição, no entanto, foram incorporados à norma dispositivos sem relação direta com o texto original da medida, os chamados “contrabandos legislativos” ou “jabutis”. Por exemplo, foram incluídas mudanças na legislação trabalhista, como a regulamentação do trabalho aos domingos e feriados. Por acordo, o item acabou sendo excluído antes da votação final.
O mesmo não acorreu em relação à legislação ambiental, porém. O texto da MP que acabou sendo aprovado prevê a dispensa de qualquer tipo de licença ambiental ou outra autorização para “atividades econômicas de baixo risco”. O artigo 3º da medida dá carta branca para “atividade econômica de baixo risco, para a qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação”. A questão é que o conceito de “baixo risco” terá de ser regulamentado pelo Executivo posteriormente, abrindo brecha para que um número indefinido de atividades seja assim classificado e dispensado de controle ambiental.
A MP também prevê que certas autorizações ambientais sejam concedidas por decurso de prazo, ou seja, se o órgão responsável não cumprir o prazo estipulado a autorização será concedida automaticamente. De acordo com o texto aprovado, o desmatamento e outorga de água poderiam ser liberados segundo esse modelo, por exemplo - mas não licenças ambientais.
“Aos governos que não interessar uma boa gestão ambiental bastará sucatear os órgãos para acelerar as autorizações”, critica Adriana Ramos, especialista em políticas públicas do ISA.
A redação chancelada pelo Senado diz ainda que os empresários não serão mais responsabilizados por “impactos ambientais indiretos” de suas atividades. O problema é que a imensa maioria do desmatamento, da exploração madeireira ilegal e da grilagem de terras na Amazônia, por exemplo, é resultado da construção de estradas e outras grandes obras, como hidrelétricas, e isso seria desconsiderado no licenciamento ambiental como "impacto indireto". O tema também é alvo de polêmica na discussão da Lei Geral do Licenciamento, em tramitação na Câmara.
“Essa MP institucionaliza o desmatamento! Estamos incluindo dispositivos como esses quando as cinzas da Floresta Amazônica escureceram o entardecer da capital paulista”, alertou o senador Randolfe Rodrigues (Rede-RR). Assim como outros senadores, ele reclamou do que classificou de contrabandos legislativos e da pressão para aprovar a matéria sem alterações. Se fossem feitas mudanças no texto, ela teria de voltar ao plenário da Câmara. O problema é que a MP perde validade na próxima terça e uma nova votação fatalmente faria a medida caducar.
“Os impactos contra o meio ambiente dessa medida são irreversíveis e de grandes proporções”, denuncia o consultor jurídico do ISA Maurício Guetta. “Também é flagrante a inconstitucionalidade da aprovação automática de atos oficiais, como a autorização de supressão de vegetação”, destaca.
“É inaceitável a aprovação da MP, seja do ponto de vista dos graves retrocessos ambientais, seja pela sua inconstitucionalidade, ainda mais com a atenção da sociedade brasileira e global voltada para a Amazônia em chamas e os descalabros do governo Bolsonaro na área ambiental. Agora, a legislação brasileira passa a prever a emissão automática de autorização de desmatamento por decurso de prazo. Não há outro caminho senão a judicialização", critica Guetta.
O texto da MP foi aprovado após a quebra de acordo da parte do governo. A oposição negociou a retirada de destaques da senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) em troca de uma emenda de redação (que, se aprovada, não faria o texto voltar à Câmara) e do veto presidencial à parte dos dispositivos que alteram a legislação ambiental. As tratativas foram aceitas pelos principais líderes partidários. Após a senadora abrir mão formalmente de suas emendas, no entanto, os governistas voltaram atrás no entendimento.
“Para variar, mais uma vez o governo não cumpre acordo. Fica muito difícil conversar com o governo, construir com esse governo uma pauta de acordos. Com esse governo não é possível a construção de uma pauta republicana”, afirmou Gama.
A votação no Senado acontece na mesma semana em que o recorde de queimadas no Brasil é notícia e ganha as redes sociais em todo o mundo. Os focos de incêndio no país aumentaram 82% desde o início do ano, chegando a um total de mais de 71 mil registros, com 54% deles na Amazônia, segundo o Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (INPE). Na terça, a cidade de São Paulo ficou às escuras em pleno dia e parte do fenômeno foi atribuída a cinzas das queimadas carregadas por correntes atmosféricas.
Pressionado pela repercussão da série de notícias negativas na área ambiental, o presidente Bolsonaro repetiu a estratégia de radicalizar o discurso e tentar criminalizar a sociedade civil. Sem apresentar nenhuma prova, insinuou que o aumento das queimadas seria responsabilidade das organizações não governamentais.
“O crime existe. Temos que fazer o possível para que não aumente, mas nós tiramos dinheiro de ONGs. 40% ia para ONGs. Não tem mais. De modo que esse pessoal está sentindo a falta do dinheiro. Então, pode, não estou afirmando, ter ação criminosa desses ‘ongueiros’ para chamar a atenção contra a minha pessoa, contra o governo do Brasil”, acusou. De acordo com ele, “tudo indica” que pessoas se preparam para ir à Amazônia filmar e, então, “tocar fogo” na floresta.
O aumento dos alertas de focos de incêndios foi precedido, sim, por movimento organizado - não de ONGs, mas de grileiros, para colocar fogo na floresta e, assim, chamar a atenção do governo para enfraquecer a fiscalização e a legislação ambientais. Segundo o jornal Folha de S. Paulo, na semana passada, desmatadores cumpriram a promessa de realizar um “Dia do Fogo” no sudoeste do Pará, na região da rodovia BR-163. Os responsáveis se sentiriam "amparados pelas palavras do presidente" e pretendem mostrar a ele que “querem trabalhar” (leia aqui).
As acusações infundadas Bolsonaro causaram indignação e perplexidade. A Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) reagiu, publicando uma nota. “O Presidente deve agir com responsabilidade e provar o que diz, ao invés de fazer ilações irresponsáveis e inconsequentes, repetindo a tentativa de criminalizar as organizações, manipulando a opinião pública contra o trabalho realizado pela sociedade civil”, afirma texto divulgado nesta quarta e assinado por mais de cem instituições, entre elas o ISA.
Antes disso, a divulgação dos altos índices de desmatamento já tinha usada pelo presidente e pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, como justificativa para acusações infundadas contra o Inpe. O Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter) do instituto registrou um aumento de 278% em seus alertas de desmatamento em julho, na comparação com o mesmo mês de 2018. De acordo com Bolsonaro e Salles, o Inpe estaria prejudicando o país ao divulgar a escalada da devastação. Bolsonaro colocou os dados em dúvida e afirmou que o presidente da instituição, o físico Ricardo Galvão, estaria “a serviço de ONGs”. Ao final da polêmica, o chefe do Executivo exonerou Galvão. O instituto é reconhecido mundialmente , há mais de 30 anos, por seu trabalho de monitoramento da floresta.