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Combustível perfeito: desmatamento provoca incêndios no Território Indígena do Xingu (MT)

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Destruição no entorno da Área Protegida promove o ressecamento da floresta e o aumento das temperaturas. 7,5 mil focos de calor foram detectados em setembro de 2020, 174% a mais em relação ao mesmo mês do ano passado
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Imagens de densas nuvens de fumaça sobre a aldeia Ipatse, feitas pelo cineasta Takumã Kuikuro, circularam pelas redes sociais no último mês: “a fumaça está cobrindo toda a Terra Indígena”, conta no vídeo divulgado no dia 18/9, que registrou incêndios no Território Indígena do Xingu (TIX), no Mato Grosso. Em outro vídeo, publicado no dia 17/9 com a descrição “fim do mundo no Xingu”, Takumã, registrou colunas de fumaça cobrindo o céu da aldeia.

Na Terra Indígena Wawi, na região leste do TIX, o rio Wawi secou pela primeira vez neste ano. “Está muito mais seco, o clima mudou bastante, por isso o rio secou”, explica Winti Khiset-je. Com a seca, o fogo se espalha rapidamente, o que aconteceu há cerca de um mês: “o fogo da roça escapou, fizeram aceiro mas não segurou. Depois pegou no brejo, no pantanal, e como o rio secou tinha muito capim, o que aumentou o incêndio. Não tem como segurar o fogo”. Esses relatos têm se tornado cada vez mais comuns.

Mais de 7,5 mil focos de calor foram detectados na Área Protegida apenas em setembro, um aumento de 174% em relação ao mesmo mês do ano passado. As chuvas que caíram no início do mês apagaram os incêndios descontrolados, mas o desmatamento no entorno, no entanto, não arrefeceu.

Até pouco tempo atrás não se tinha registro de incêndios descontrolados, mas com o avanço do desmatamento e o consequente ressecamento da floresta e aumento da temperatura, eles se tornaram cada vez mais frequentes. De uma média de 82 focos de calor por ano entre 1995 e 2000 no TIX, passaram a ser registrados 638 focos de calor/ano entre 2010 e 2015. Nos anos seguintes, essa taxa explodiu: em 2016 foram detectados 1,9 mil focos de calor, em 2020 o número já passa de 2,1 mil focos de calor, e o ano ainda não acabou.


Na região das cabeceiras, no entorno do TIX, 40% das nascentes foram destruídas. Ali, os indígenas assistiram a uma mudança brutal em seu entorno: Nos últimos 30 anos, aproximadamente 66% das florestas nas adjacências da TI foram desmatadas e as fazendas de gado deram lugar a grandes monoculturas de grãos. Temperaturas mais quentes, seca, imprevisibilidade das chuvas e incêndios descontrolados agora fazem parte do cotidiano no território.

“Esse ano está muito preocupante, muito ruim. A mata ficou mais seca ainda, mesmo com a chuva, três dias depois o fogo acendeu de novo”, conta Winti. Há cerca de 20 dias, em meados de setembro, os indígenas, junto com a equipe do PrevFogo, do Ibama, tentam controlar um incêndio na TI Wawi.


Desmatamento fora, incêndio dentro

Os primeiros grandes incêndios foram identificados nos anos 2000, quando o desmatamento se aproximou dos limites do território.

A primeira ocorrência de um incêndio de grande proporção aconteceu em 1999, atingindo uma área de 77 mil hectares. A segunda, em 2007, alcançou 215 mil hectares, e em 2010, o fogo atingiu cerca de 290 mil hectares de floresta, pouco mais de 10% da área total do TIX. Mais recentemente, há uma reincidência dos incêndios em áreas quem já foram queimadas, por serem mais inflamáveis e suscetíveis ao fogo.

Hoje, os pontos mais críticos no TIX durante o período de queimadas estão localizados na porção sul e sudeste do território, como as imagens de Takumã que viralizaram nas redes sociais. Isso se agrava nos pontos onde já ocorreram queimadas no passado.



É o caso da Terra Indígena Pequizal do Naruvotu, território retomado pelos indígenas e homologado em 2016, onde ainda há resquícios de áreas de pasto e gramíneas bastante inflamáveis. O mesmo acontece na região do rio Kurisevo, adjacente aos limites do território, onde incêndios extremos se tornaram mais frequentes.

Ali o “efeito de borda" chega com mais força, explica Kátia Ono, articuladora comunitária e assessora técnica em manejo de recursos naturais e fogo do ISA no TIX. A baixa umidade é mais forte nessas regiões, próximas das áreas no entorno, já bastante degradadas, tornando-as mais suscetíveis a incêndios recorrentes.

“O fogo está nessa situação por conta do desmatamento que já aconteceu. E agora os indígenas têm que responder a uma condição que não foi gerada por eles. Então dizer que eles são os provocadores dos incêndios é muito tacanho. Essas populações estão tendo que dar conta de enfrentar invasões, tentativas de tomadas de seus territórios, e ainda controlar o fogo”.

O futuro é agora

Em apenas 10 anos, entre 2000 e 2010, a temperatura nas cabeceiras do Xingu aumentou 0,3 grau, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). Pode parecer pouco, mas a temperatura média da Terra aumentou 1,02 grau Celsius desde o século XIX, segundo o Met Office, escritório britânico de meteorologia.

Essa abrupta mudança de temperatura no Xingu pode ser explicada pelo avanço do desmatamento no entorno do TIX. A floresta é um grande "ar-condicionado", explica Paulo Moutinho, doutor em ecologia e cientista sênior do IPAM.

“Quando se remove excessivamente a vegetação, você começa a alterar o regime local que é influenciado de uma maneira dramática pelos eventos globais”, diz. Com a derrubada da floresta, o solo fica exposto, absorvendo e emitindo mais calor, o que provoca uma perda do serviço de resfriamento. O desmatamento ainda impacta os processos de evapotranspiração da floresta, responsável pelas chuvas.



Altas temperaturas e a seca tornam a floresta “ideal” para incêndios descontrolados. “Acúmulos de déficit de água, à medida que o desmatamento e o fogo avançam, tornam a floresta mais frágil. As árvores morrem de sede, vira um "filé" para o fogo florestal”, explica Moutinho.

As diferenças de temperatura entre as áreas do TIX para as regiões ao redor podem variar de 4º a 8º graus, segundo o mesmo estudo. Isso, associado com o desmatamento e mudanças ambientais, faz com que o regime de chuvas da região se altere, provocando atrasos entre um ano e outro e aumentando os períodos de seca da região. “É como se desregulasse o ar-condicionado”, comenta o especialista.

As consequências da seca vão além dos impactos sobre os indígenas, já que 40% da umidade da bacia do Xingu é gerada pelas florestas do TIX. “Se retirarmos o território, desmatarmos tudo, certamente o aumento da temperatura seria muito maior e teria um problema sério de aquecimento da bacia. O TIX é o grande sistema de irrigação das plantações e dos pecuaristas que estão em volta. Se eles querem manter os seus negócios saudáveis, é preciso investir na proteção da TI, na valorização do modo de vida indígena e assim por diante”, explica.

Estudos preliminares do IPAM mostram que essa região já tem um aumento de temperatura esperado para 2050 e 2070, segundo modelagens do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU. Para Moutinho, “o futuro é agora e portanto, o senso de emergência tem que existir como nunca. Urgência significa ganhar tempo, fazer ações para que a situação melhore e não chegue em um ponto sem retorno”.


Sinais da natureza trocados e os acordos comunitários

O uso do fogo pelos indígenas é pautado por sinais da natureza. A floração do ipê, a desova do tracajá, o canto das cigarras, o andamento das nuvens e dos ventos indicam quais são os momentos adequados para a queima de roça e outras práticas associadas.

Para abrir seus roçados, por exemplo, as comunidades esperavam os sinais que indicavam a chegada das chuvas. Assim, queimavam no horário mais quente do dia, com muito vento e calor, porque tinham a certeza de que a própria umidade da floresta iria apagar o fogo e provocar a chuva.

Com o avanço do desmatamento e as mudanças ambientais, no entanto, esses sinais saíram de sincronia e os incêndios se tornaram mais frequentes. "Agora ninguém mais tem certeza de nada", comenta Kátia Ono.

Frente a isso, os indígenas têm trabalhado na construção de acordos comunitários para os trabalhos que envolvem o uso e manejo do fogo (como abertura de roças, queima de áreas do campo e pescarias), promovendo ações de prevenção aos incêndios junto às aldeias e monitoramento dos focos de calor dentro do território.

“A floresta é necessária para a vida dos indígenas e eles não querem colocar em risco aquele ambiente porque sua vida está pautada naquela floresta. Seus conhecimentos e forma de viver estão ali. Eles estão fazendo o seu esforço de adaptar-se a essa nova condição”, explica Ono. [Saiba mais sobre os processos de adapção dos indígenas do Xingu e assista ao vídeo]

Recriar o mundo

Isso significa, na prática, reorganizar a comunidade para poder enfrentar essas mudanças. Por exemplo, se antes a atividade de colocar fogo na roça era solitária, agora é preciso juntar um mutirão para todos ficarem atentos e cuidarem para ofogo não sair do controle. Outro exemplo é o tipo de material escolhido para a construir o telhado das casas: ao invés de usar o sapé, um tipo de capim altamente inflamável, os indígenas trocaram pelo inajá, uma palmeira que não precisa ser queimada todo ano para crescer.

As discussões sobre o fogo, seus usos e cuidados são cada vez mais constantes nas comunidades. Seja no centro da aldeia, pelo Whatsapp ou rádio amador, o diálogo foi o caminho encontrado pelos indígenas e seus parceiros para enfrentarem essas mudanças.

Além disso, os indígenas têm feito um trabalho de seleção de variedades agrícolas mais resistentes às novas condições ambientais e pesquisado outras formas de fazer a agricultura. Paea Ono, esse processo vai além das fronteiras do Xingu: “significa que você pode gerar segurança alimentar para todo mundo, visto que muitas espécies que utilizamos foram selecionadas por essas populações tradicionais. Eles ainda estão fazendo o exercício de criar outras naturezas para o futuro, estão recriando o mundo”.

Isabel Harari
ISA
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