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Há 36 anos trabalhando como “Toyoteiro” na BR-307, Alfredo Nicanor Nogueira da Silva, conhecido como Coelho, é o mais antigo do grupo de sete motoristas das surradas Toyotas Bandeirantes que fazem o transporte da população das Terras Indígenas Balaio e Yanomami para a área urbana de São Gabriel da Cachoeira (AM). Para cruzar o pesadelo de lama e buraco por 85 quilômetros, o valor é de mil reais cada trecho. Ir e voltar da terra indígena para a cidade custa dois mil, mais caro do que uma viagem internacional de avião, como São Paulo-Miami.
Para compensar esse valor, as Toyotas costumam andar lotadas, com muitas crianças, idosos aposentados, mulheres que estão recebendo auxílio maternidade e famílias que vão até a cidade receber o Bolsa Família. Sem nenhuma segurança, é comum a viagem ser interrompida por um gigante atoleiro que engole a Toyota, deixando os viajantes pernoitarem na estrada até serem resgatados por outro Toyoteiro. Esses motoristas são uma espécie de Mac Gyver amazônico, que constroem pinguelas, desatolam carros submersos e dão todo tipo de nó em pingo d’água para manter alguma trafegabilidade na via.
“Mesmo cobrando esse valor quase não compensa o trabalho por causa do alto custo de manutenção das Toyotas, que se detonam na estrada. Mas a gente não pode deixar o pessoal ilhado. A gente nem vai atrás do trabalho, mas os índios e o pessoal das instituições, como da Saúde, é que vem atrás precisando de transporte”, comenta Coelho, que viu a rodovia ser aberta durante o governo militar, quando era adolescente. No projeto original, a BR-307 (rodovia federal diagonal) se inicia no município de Marechal Thaumaturgo, no Acre, e segue até o distrito de Cucuí, na fronteira com a Venezuela, em São Gabriel da Cachoeira. A rodovia fez parte do Plano Nacional de Viação, instituído pela Lei 5.917, de 10 de setembro de 1973.
O ponto de encontro dos Toyoteiros não poderia ser em outro lugar que não em uma oficina mecânica. É na Oficina do Macaxeira na periferia de São Gabriel que se encontram as enlameadas Toyotas da BR-307 e onde melhor podemos averiguar as condições da estrada antes de planejar uma viagem. Lá é uma espécie de central de informações sobre a BR, com troca de fotos e vídeos das aventuras dos motoristas e seus passageiros. Trafegar pela BR-307 nos dias atuais ainda parece uma expedição de Rondon e sua comissão de instalação de linhas telegráficas no Brasil profundo.
Por falar em expedições em lugares de difícil acesso, é por essa estrada que se inicia a viagem para chegar ao ponto mais alto do Brasil, o Pico da Neblina, chamado de Yaripo pelos Yanomami. A BR corta o Parque Nacional e no km 85 (Ya-Mirim) encontra-se o ponto de embarque e desembarque para a Terra Indígena Yanomami, que faz sobreposição com o Parque. Com o início do ecoturismo promovido pelos próprios Yanomami, a população local vê com muita preocupação essa dificuldade de trânsito na estrada, que chega a ser inviabilizado na temporada de chuvas. “Agora as chuvas vão recomeçar e a situação vai complicar. As obras na estrada vão ter que parar porque não dá para fazer nada com esse tempo chuvoso”, afirma Lirlene de Sá Lopes, Toyoteiro pernambucano que atua há quatro anos na estrada e costuma fazer uma média de três viagens da cidade para o km 85 por semana.
“A melhoria da estrada precisa ser agilizada pelo DNIT e órgãos responsáveis. Pagamos muito caro para os toyoteiros para irmos na cidade. São os idosos e as crianças que mais sofrem na estrada, que passam fome, pegam chuva e muitas vezes têm que dormir na rodovia. Essa estrada é nosso único acesso à saúde, educação e os benefícios sociais que temos direito”, enfatiza Floriza da Cruz Pinto, presidente da Associação Kumirayoma, de mulheres Yanomami. Ela acrescenta ainda que com o projeto de ecoturismo Yanomami – Yaripo -, a comunidade de Maturacá, onde moram cerca de 3 mil Yanomami, conta com a recuperação da via para o recebimento dos turistas e geração de renda local.
Já na TI Balaio, durante a oficina de validação do Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA), ocorrida no dia 18 de outubro na comunidade do Ya-Mirim, o tema da BR-307 foi o que ganhou maior destaque entre os participantes. "Se estamos fazendo nosso plano a estrada é a prioridade, é o mais importante. Precisamos de transporte para levar nossos produtos e gerar renda”, frisa Jacinta Sampaio, do povo Tukano. Na TI Balaio moram cerca de 350 indígenas, segundo o Censo do PGTA feito pela FOIRN e ISA.
Tiago Sampaio, do povo Tukano, de 49 anos, é morador da TI Balaio e presidente da Associação Indígena do Balaio. Há anos milita pelas melhorias na BR-307 e se diz cansado com a lentidão das obras de melhoria e conservação. Ele nem consegue mais contar quantas vezes já ficaram meses ilhados devido às más condições da BR. “Queremos também mais informação por parte daqueles que executam as obras, assim como os recursos que estão sendo investidos e o cronograma de trabalho. Nunca marcam uma conversa oficial com as comunidades para nos informar. Queremos mais transparência”, afirma Sampaio.
Ele sugere que uma nova audiência seja feita na Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) sobre o tema, para que as instituições e as comunidades possam dialogar. Especialmente os servidores da Saúde e da Educação Indígena podem dar um panorama da situação precária que enfrentam para atender às comunidades servidas pela BR-307. De maioria Tukano, também moram na TI Balaio indígenas das etnias Desana, Baré, Hup'däh, Tariano, Piratapuia, entre outras.
Atualmente, estão em andamento dois serviços de manutenção e recuperação da BR-307, ambos sob a responsabilidade da 21 ª Companhia de Engenharia e Construção, subordinada ao 2º Grupamento de Engenharia do Exército Brasileiro. Os serviços são denominados Operação Poranga e Operação Ya-Mirim, oriundos de contratos firmados entre o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e o Departamento de Engenharia e Construção (DEC), do Exército, em maio e setembro de 2018. Como consta no ofício respondido pelo DNIT ao Ministério Público Federal (MPF-AM) no último dia 21 de outubro sobre o andamento dos trabalhos, as obras emergenciais tiveram prazo de conclusão prorrogado por mais 365 dias, passando de 21/11/2019 para 19/11/2020. Os valores investidos são de R$ 18,4 milhões na operação Ya-Mirim e de R$ 636 mil na operação Poranga, como informam as placas das obras na rodovia.
Ainda segundo o ofício, apenas 8,6% do total contratado foi executado na BR-307 até o momento. Os Toyoteiros reclamaram que os piores trechos não foram priorizados, como a parte entre os quilômetros 65 e 85. “A gente costuma levar umas três horas para passar esses vinte quilômetros. Isso se a gente conseguir cruzar”, conta Coelho. A Foirn, que representa os 23 povos indígenas da região, já enviou uma série de documentos cobrando medidas eficazes e urgentes, uma vez que serviços de saúde, escoamento de produtos agrícolas e outros insumos tem sido gravemente prejudicados. Em agosto deste ano o Conselho Diretor da Foirn fez uma carta pública solicitando a construção imediata de pontes localizadas no Ya-Mirim (KM 85), Igarapé Rodrigo Cibele (KM 95) e Igarapé Balaio (KM 100), mas nenhuma dessas demandas dos indígenas foi atendida até o momento.
De acordo com o cronograma físico informado pela 21 ª Companhia de Engenharia e Construção, até esse mês de novembro será executado 10,8% do contrato da Operação Ya-Mirim e a partir do mês de dezembro será executado 24% do total contratado, permanecendo assim até meados de maio de 2020. Os serviços de manutenção (conservação/recuperação) na rodovia serão intensificados a partir de julho de 2020, quando for o início do verão na região (período de seca), aumentando gradativamente até o término dos serviços contratados. Já na parte dos serviços de substituição de bueiros e galerias para recuperação do corpo estradal (operação Poranga), a informação é de que 91,6% dos serviços foram realizados.
Para o engenheiro responsável pela obra, o major Duílio, comandante da 21 ª Companhia de Engenharia e Construção, a maior dificuldade em acelerar a obra diz respeito aos trâmites do processo de aquisição de materiais, assim como pela distância de São Gabriel, município que fica na faixa de fronteira com a Colômbia e a Venezuela. “Existe a necessidade da realização de pregões para aquisição dos insumos necessários à obra, o que já está em andamento, mas a chegada do material é dificultada pela questão logística devido a posição geográfica da cidade de São Gabriel da Cachoeira”, informou por email.
O drama da recuperação e manutenção da BR-307 é uma novela que se prolonga por mais de dez anos. Notícias falsas circulam com o intuito de desqualificar o trabalho dos órgãos ambientais, como do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pela gestão do Parque Nacional do Pico da Neblina, que impôs condicionantes ambientais à obra. Contudo, hoje, não há impedimento ambiental para que os pontos críticos da estrada sejam recuperados, assim como sua manutenção pela 21 ª Companhia de Engenharia e Construção.
Vale lembrar que por meio de ofício datado de 28/04/2017, o Ibama informou que “o entendimento deste Instituto é pela possibilidade de execução de obras emergenciais conforme previsto no Parecer 3/2017 COTRA/IBAMA, podendo as obras no interior da unidade de conservação ser realizada por via direta da chefia da UC. O entendimento do Ibama vai ao encontro da necessidade de trafegabilidade pelas comunidades locais, pela falta de normativa quanto a necessidade de licenciamento ambiental para manutenção de rodovias não pavimentadas e pelo fato de que a falta de manutenção poderá trazer mais impactos ambientais do que as obras em si”.
Fake News sobre o ICMBio e o MPF estarem impedindo as obras e prejudicando o desenvolvimento da região são constantes, inclusive com postagem no Twitter feita por Eduardo Bolsonaro em 2017, quando o mesmo visitou a região e acusou o Ministério Público de atrapalhar os povos da região. Condicionantes que foram colocadas para as obras não são impeditivos para que a BR seja recuperada e mantida. Desde 2009 existe uma autorização do ICMBio para se fazer as obras de recuperação na estrada (autorização 35/2009).
Para Coelho, a recuperação plena da BR-307 é um sonho que ele não sabe se será realizado enquanto vive. Ele que já passou por aventuras memoráveis na estrada, espera que um dia a mesma seja revitalizada incluindo o trecho que vai da TI Balaio (KM 100) até o distrito de Cucuí, na fronteira com a Venezuela, fechado no ano de 2003 e nunca mais reaberto para trânsito. O Toyoteiro recorda um episódio perigoso: já transportou nessa rota Fernandinho Beira-Mar quando o narcotraficante se escondeu em São Gabriel e começou a ter relações com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Na época, Coelho fez uma viagem de ida e volta de São Gabriel a Cucuí com Beira-Mar, sem saber de quem se tratava. “Quando vi o cabra preso na televisão tomei foi um susto porque lembrei da viagem que fizemos juntos na BR. Achava que era um desses peões que vem tentar a sorte no garimpo”, brincou.
A BR-307 também era um elo de ligação da cidade de São Gabriel com um dos seus mais importantes distritos, Cucuí, na fronteira com a Venezuela, onde existe um Pelotão de Fronteira do Exército Brasileiro. Localizada na Terra Indígena de Cué-Cué Marabitanas, que tem uma população de cerca de 1.750 moradores, Cucuí foi cenário de grande revolta da população com o descaso do governo em relação ao péssimo estado de conservação das 14 pontes da rodovia em São Gabriel, em especial da última ponte da BR sobre o Igarapé Bonté. Essa ponte de aproximadamente 120 metros era a ligação da ilha de Cucuí ao lado Sul que interliga ao município de São Gabriel.
Devido à precariedade da ponte que servia à comunidade e aos estudantes que atravessavam para ir à escola, cinco indígenas se acidentaram e morreram ao cair do elevado. O último acidente fatal foi com o senhor Valdomiro Pereira da Silva, do povo Baré. Essa quinta morte, ocorrida no dia 27 de fevereiro de 2007, foi o estopim da revolta da população. No dia primeiro de março de 2007, indignados e cansados com o descaso, colocaram fogo na ponte para evitar novas mortes e chamar atenção das autoridades. Nunca tiveram uma nova ponte construída nesses 12 anos que se passaram desde então. “Cansamos do desdém do governo. A comunidade sempre foi favorável a melhoria da estrada. Mas, mesmo com todos os nossos esforços para colaborar, nunca tivemos retorno de nada”, lamenta Osmar Filho, Baré de 44 anos, nascido no distrito de Cucuí, que sempre apoiou os trabalhos da Associação Indígena de Desenvolvimento Comunitário de Cucuí (AIDCC).
Com a desativação da ponte, a comunidade passou a ter acesso à cidade somente pelo rio Negro. Na vazante, porém, a viagem fica difícil e perigosa por conta do excesso de pedras que tem no Alto rio Negro e Cucuí muitas vezes fica praticamente isolada. Osmar lembra que quando a BR-307 era ativa existia um ônibus de linha que ligava Cucuí à sede municipal. “A gente gastava 20 reais de passagem. Hoje, para viajar de rabeta, que é o motor mais econômico, gastamos 400 reais para viajar até a cidade”. Além disso, Osmar recorda que o distrito também era muito frequentado por outros parentes da região, por se tratar de um local bonito, com serras e praias, além de ter uma famosa festa para São Sebastião no 20 de janeiro, atraindo visitantes para celebrar o dia do padroeiro do distrito.
* reportagem atualizada às 09h50 de 06/12/2019.