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O coordenador do Grupo de Trabalho (GT) da Câmara dos Deputados sobre licenciamento ambiental, Kim Kataguiri (DEM-SP), divulgou a terceira versão do relatório do colegiado.
O parlamentar tem dito que buscou a alternativa "mais equilibrada" entre as posições de ambientalistas, de um lado, e da bancada ruralista, da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e do governo, de outro. Durante a série de audiências públicas realizadas pelo GT, ele acatou sugestões de ambientalistas e sociedade civil e chegou a sinalizar mais avanços para os direitos socioambientais. O texto que veio a público, na quinta (18), porém, volta atrás em vários pontos e traz novos retrocessos.
O Congresso entrou em recesso na semana passada e volta a funcionar em 6/8. A perspectiva é de que o Projeto de Lei Geral do Licenciamento seja votado no plenário da Câmara ainda em agosto.
A redação apresentada por Kim tende a ser aquela que será votada em plenário, mas ainda pode sofrer alterações. Diferente das comissões, a figura do GT visa buscar um consenso político sobre determinado tema, mas não implica obrigatoriedade no que toca ao texto final que é votado na forma de um projeto e suas possíveis emendas (saiba mais no quadro ao final da notícia).
“Minha preocupação pessoal é de não deixar que a legislação seja desfigurada por mudanças de última hora no plenário”, afirmou Kataguiri à Folha de S. Paulo.
O relatório abre brechas para o que, na prática, pode ser a dispensa em massa de licenças para atividades agropecuárias; obras de melhoria, modernização e manutenção de empreendimentos de infraestrutura de transporte; entre outros. Além disso, de acordo com a redação, no licenciamento seriam considerados apenas uma parte dos impactos ambientais, os chamados “impactos diretos”, os mais imediatos e espacialmente restritos (entenda mais sobre a importância do licenciamento no quadro ao final da notícia).
Se o texto for aprovado, o asfaltamento de estradas poderia ser feito sem licenciamento ambiental ou, no caso dele ocorrer, poderiam ser desconsiderados milhões de hectares de desmatamento causados indiretamente. Pesquisas dão conta de que aproximadamente 95% do desmatamento na Amazônia acontece em um raio de 5,5 km das estradas, impacto comumente classificado como “indireto”.
No caso da agropecuária, o texto prevê que a validação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) poderia ser considerada uma licença ambiental e, enquanto ela não acontecer, a mera inscrição no CAR passaria a ter efeitos de licença. Mesmo áreas com desmatamentos ilegais ou que são alvo de multas ambientais poderiam ser automaticamente licenciadas. Além disso, a proposta leva para o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), controlado pelos ruralistas, a responsabilidade de licenciar essas atividades: o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), responsável pelo cadastro, foi transferido do Ministério do Meio Ambiente (MMA) para a Agricultura, na reforma ministerial do governo Bolsonaro.
O CAR é um um registro de todos os imóveis rurais no país, integrando as informações das propriedades em uma base de dados com o objetivo de viabilizar a regularização ambiental e garantir o controle e monitoramento do desmatamento. O cadastro é autodeclaratório e inclui dados sobre as áreas desmatadas, as que devem ser reflorestadas ou preservadas.
Outro problema grave do texto de Kataguiri é que ele coloca em risco os direitos de populações indígenas e tradicionais que podem ser afetadas pelas obras. Entre outros pontos, a proposta prevê que a participação no licenciamento dos órgãos de defesa dessas comunidades, como a Fundação Nacional do Índio (Funai) ou a Fundação Cultural Palmares (FCP), ficará restrita aos casos em que há impactos sobre Terras Indígenas com portaria declaratória publicada e quilombos titulados.
A titulação é a última fase da regularização dos quilombos e 85% dos processos sequer passaram da primeira fase, de publicação dos Relatórios Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Isso quer dizer que, para efeito de manifestação da FCP no licenciamento, a imensa maioria dos territórios quilombolas simplesmente seria desprezada.
“Houve ainda redução drástica dos prazos para manifestação desses órgãos. Considerando seu sucateamento, o resultado provável é o não atendimento dos prazos e a consequente possibilidade de emissão de licenças sem qualquer avaliação sobre os temas em questão”, avalia o consultor jurídico do ISA Maurício Guetta. Ele acrescenta que a proposta de Kataguiri prevê também que os pareceres dessas instituições não terão caráter vinculante, obrigatório, permitindo que eles sejam desconsiderados pelos órgãos licenciadores.
Guetta lembra ainda que a redação proposta pelo parlamentar restringe a participação no licenciamento do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pelas Unidades de Conservação (UCs), e do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
No primeiro caso, a opinião do órgão só será considerada se houver uma UC de proteção integral (de uso restrito dos recursos naturais) sobreposta à área diretamente afetada, excluindo aquelas presentes na chamada “área de influência”. Todas as UCs de uso sustentável (de manejo florestal) serão desconsideradas. No caso do Iphan, seus pareceres também só serão considerados quando os bens históricos ou culturais a ser protegidos estiverem sobrepostos à área diretamente afetada, excluindo aqueles que estiverem na “área de influência”.
“Uma das principais preocupações era sobre o risco de judicialização [no processo de licenciamento]. Fui convencido de que isso se soluciona ouvindo todos, o mais rápido possível”, defendeu Kataguiri à Folha de S. Paulo.
Outro ponto preocupante da nova proposta é que ela deixa de prever prazo máximo para alguns tipos de licenças: a licença única, a de operação e a licença corretiva. Com isso, é possível a emissão de autorizações com prazo de 100 anos ou mais. “O fato é grave, pois é na renovação da licença que o órgão ambiental fiscaliza o empreendimento e verifica o cumprimento das condicionantes pelo empreendedor, além de adequar a atividade às novas normas eventualmente expedidas”, analisa Guetta.
O que é licenciamento ambiental?
O licenciamento ambiental é um dos instrumentos mais importantes da Política Nacional de Meio Ambiente (Lei 6.938/1981) destinado a garantir os direitos fundamentais à qualidade de vida, à saúde e ao meio ambiente equilibrado previstos na Constituição. Trata-se de um procedimento administrativo, com diferentes fases, pelo qual um órgão ambiental (federal, estadual ou municipal) avalia e autoriza (ou não), num determinado local e momento, a instalação, a ampliação e a operação de atividades ou empreendimentos econômicos que usam recursos naturais ou que podem poluir ou degradar o meio ambiente.
Hoje, dependendo do caso, é possível obter uma licença ambiental simplificada. Em relação às obras de maior porte e potenciais impactos, a maioria dos procedimentos exige três licenças: prévia (quando são aprovados estudos e projetos); de instalação (autorizando o início das obras); e de operação (autorizando o funcionamento da atividade ou empreendimento ). Existe um espectro amplo de atividades que devem ser licenciadas, desde instalação de um posto de gasolina, o desmatamento de uma área com vegetação nativa, passando pela abertura de estradas, implantação de uma mina ou fábrica, chegando a construção de grandes hidrelétricas ou complexos industriais.
Qual a importância do licenciamento?
O licenciamento é fundamental para identificar, prevenir, controlar, reduzir e compensar os impactos negativos - sociais ou ambientais - dos projetos ou atividades econômicos, visando proteger o meio ambiente e a qualidade de vida das populações. Por meio dele, o órgão ambiental estabelece as condições, restrições e medidas que deverão ser obedecidas para que o empreendimento ocorra de forma minimamente segura do ponto de vista socioambiental.
O procedimento também visa promover a publicidade, transparência e a participação social nos processos que envolvem a tomada de decisão do Poder Público sobre bens ambientais como a água, as florestas e o clima. Por meio de audiências públicas, previstas no processo, é possível mitigar ou resolver conflitos que podem acontecer entre empresas, governos e comunidades, inclusive reduzindo o tempo para solução dessas divergências.
Atualmente, os governos federal, estaduais e de mais da metade dos municípios têm legislações e rotinas administrativas voltadas ao licenciamento ambiental e avaliação de impactos ambientais. Apesar de não existirem estatísticas oficiais, estima-se que, anualmente, sejam emitidas dezenas de milhares de licenças ambientais no Brasil.
Diferentemente de alguns países que possuem uma lei geral, no Brasil os requisitos legais estão dispersos em diferentes normas. Além daqueles contidos na Política Nacional do Meio Ambiente, há dispositivos importantes nas Resoluções CONAMA 01/1986 e 237/1997 e na Lei Complementar 140/2011. Regras complementares estão contidas em outras leis e regulamentos federais, estaduais e municipais.
A ausência do licenciamento ambiental para determinadas atividades ou setores ou uma lei inadequada ou desequilibrada pode potencializar riscos de impactos à sociedade e prejuízo aos empreendimentos que podem ser implantados sem a garantia de enquadramento nos parâmetros constitucionais de proteção ambiental. Isso abre brecha para contestações judiciais, o que cria um ambiente de insegurança jurídica. Tal insegurança pode ter impacto negativo no ambiente de investimentos, diminuindo linhas e oferta de créditos. Portanto, um marco legal claro, equilibrado e eficaz também significaria garantia de segurança jurídica e regulatória.
O que pode ser considerado impacto ambiental?
O impacto ambiental é qualquer alteração física, química ou biológica do meio ambiente causada por qualquer atividade humana que afete, direta ou indiretamente, a saúde, a segurança e o bem-estar da população; as atividades sociais ou econômicas; o conjunto de animais e plantas de uma região; as condições e a qualidade dos recursos ambientais (água, ar, solo, alimentos etc).
Como o licenciamento ambiental pode afetar a vida das pessoas?
As consequências de um licenciamento ambiental mal feito podem ser tão abrangentes e variadas quanto os impactos do conjunto de atividades que podem ou devem ser licenciadas. A qualidade e a disponibilidade de recursos naturais tão essenciais, quanto água e ar puros, podem ser comprometidas, em função da escala do empreendimento ou atividade e dos impactos envolvidos.
O licenciamento ambiental deficiente de um posto de gasolina, por exemplo, pode resultar na contaminação de um curso ou corpo de água, incluindo fontes de água potável, e em incômodos e riscos à vizinhança, caso venha a ser implantado em uma área residencial.
Esses riscos aumentam exponencialmente no caso de grandes projetos, como refinarias ou distribuidoras de combustível. Atividades perigosas, que utilizam produtos tóxicos, contaminantes ou explosivos exigem análises ambientais mais rigorosas que envolvem além da produção, o transporte e o armazenamento dos resíduos gerados.
Nas últimas décadas, há inúmeros casos, no Brasil e no mundo, de desastres socioambientais de grandes proporções provocados por negligência ou abusos envolvendo o processo de licenciamento ambiental em si ou alterações na legislação relacionada. O resultado são mortes, danos ambientais irreparáveis ou recuperáveis após décadas, comunidades inteiras deslocadas sem compensações condizentes e prejuízos financeiros de grandes dimensões.
O caso mais recente e grave foi o rompimento da barragem de rejeitos de mineração da companhia Vale, em Brumadinho (MG), em 25 de janeiro de 2019. O crime deixou um rastro de pelo menos 246 mortos e 24 desaparecidos até agora. No final de 2018, alterações realizadas pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais na legislação estadual do licenciamento ambiental permitiram reduzir o grau de risco do reservatório de rejeitos da mina do Córrego do Feijão, cujo rompimento provocou a catástrofe. Se os controles e parâmetros presentes na legislação tornarem-se menos rigorosos, mais casos como esses podem acontecer.
Outro exemplo é o Vale da Morte, apelido do polo petroquímico de Cubatão, no estado de São Paulo, nas décadas de 1970 e 80, quando indústrias jogavam na atmosfera toneladas de gases tóxicos, gerando uma névoa venenosa que afetava a saúde da população, causando desde doenças respiratórias até o nascimento de bebês com deformidades físicas. A água e os solos também foram contaminados.
Vazamentos de combustível também causaram grandes impactos, como o incêndio da Vila Socó, na mesma região, que deixou cerca de 100 mortos, por causa de uma falha nos dutos subterrâneos da Petrobrás que espalhou 700 mil litros de gasolina na região, em 1984.
Como vem sendo discutida a lei geral do licenciamento?
O principal projeto de lei (PL) em discussão no Congresso Nacional sobre licenciamento ambiental é o PL 3.729, de 2004. Ele já teve dois relatórios aprovados em comissões da Câmara dos Deputados: na de Agricultura, em 2014, e na do Meio Ambiente, em 2015. Em apreciação na Comissão de Finanças e Tributação, sob relatoria do deputado Mauro Pereira (PMDB-RS), o PL recebeu treze versões de pareceres, mas não chegou a ser votado por falta de acordo. Em 2017, passou a tramitar em regime de urgência, o que permite que o PL possa ser votado direto em Plenário a qualquer momento, sem necessidade de apreciação em outras comissões.
Em 2019, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-SP), assumiu o tema como parte de sua agenda de desburocratização e estímulo à economia. Sua principal bandeira é a fixação e redução de prazos para a concessão das licenças. Apesar de ter afirmado algumas vezes que não colocaria o assunto em votação sem consenso, Maia tende a pressionar pela aceleração da tramitação da proposta.
Em maio, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), chegou a criar uma Comissão Especial para discutir a proposta, mas voltou atrás. No dia 3/6, instituiu um Grupo de Trabalho (GT) para propor os elementos básicos de um projeto de Lei Geral do Licenciamento, com prazo de 60 dias para apresentar um relatório, prorrogáveis por mais 60 dias. O deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) foi escolhido como coordenador do grupo. O grupo aprovou uma rodada de dez audiências públicas sobre o assunto, entre entre 17/6 e 9/7.
Qual é a tramitação que a proposta deve ter?
Após o fim das audiências, o relatório poderá ser apresentado e o PL pode ser votado no plenário da Câmara. Caso seja aprovado, segue ao Senado para ser debatido nas comissões e no plenário da Casa. Se a versão aprovada for a mesma que aquela proveniente da Câmara, segue para sanção presidencial. Se for alterado, volta para ser apreciado no plenário da Câmara.
Quem e quais interesses estão envolvidos nesse debate?
Durante toda a tramitação, a bancada ruralista, o lobby de organizações como a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e as empresas do setor de infraestrutura têm pressionado pelo enfraquecimento dos instrumentos de controles e restrições previstos na legislação.
O discurso desses segmentos é o de que o licenciamento burocratiza, encarece, atrasa ou até inviabiliza empreendimentos importantes para a geração de emprego e renda e o crescimento do país. Dados têm apontado, no entanto, que o responsável pela paralisação e atraso das obras não é o licenciamento, mas estudos e projetos mal feitos, corrupção, má gestão e a insuficiência de estrutura, recursos humanos e financeiros nos órgãos licenciadores. No caso do órgão licenciador federal, o Ibama, dados de 2018 apontavam que na lista de grandes obras de infraestrutura consideradas estratégicas pelo governo federal não havia atrasos significativos na concessão das licenças.
Os representantes de alguns setores do agronegócio defendem principalmente a isenção de licenças para agricultura, pecuária e silvicultura, além de estar interessados em medidas que possam facilitar o financiamento dessas atividades e obras de infraestrutura necessárias à promoção e escoamento da produção no interior do país.
O lobby da indústria vem lutando sobretudo para tentar garantir a redução de prazos, responsabilidades e custos, incluindo aí a definição do tipo e da área dos impactos que devem ser considerados em cada empreendimento, além do maior número possível de isenções, inclusive para ampliação e melhorias em obras de infraestrutura, entre outros pontos.
Por outro lado, organizações ambientalistas e outros segmentos da sociedade civil, pesquisadores e Ministério Público reconhecem que a atual legislação precisa ser aperfeiçoada, especialmente diante de novas demandas da sociedade, eventos climáticos extremos e mudanças tecnológicas nos empreendimentos. Além disso, há necessidade de harmonizar as inúmeras normas estaduais e infralegais (decretos, resoluções, portarias etc), e que é necessário um novo marco legal que garanta mais eficiência, racionalidade e celeridade ao licenciamento ambiental.
Reivindicam, no entanto, que sejam respeitados os direitos socioambientais dos diferentes segmentos sociais e populações, os biomas e áreas frágeis e estratégicas para a biodiversidade brasileira. Para esses setores, os impactos dos empreendimentos precisam balizados, mitigados e compensados de modo adequado para garantir, conforme determina a Constituição, um meio ambiente equilibrado para todo o povo brasileiro. O licenciamento também é uma garantia para todo cidadão de que o Estado zela por sua segurança e de que não será vítima de um desastre passível de ser evitado, como o rompimento da barragem de Brumadinho. Nesse sentido, o resultado esperado é uma legislação equilibrada, que concilie proteção ambiental e social, segurança jurídica e regulatória e estímulo à iniciativa privada e à sociedade.
Quais os custos do licenciamento para os empresários?
Números que circulam pela internet atribuindo ao licenciamento um custo de quase 30% do empreendimento e que estão no discurso de alguns políticos não têm comprovação ou fonte científica. É muito difícil fazer esse cálculo, porque os custos envolvidos podem variar bastante em função de cada caso. No caso de usinas hidrelétricas, um documento do Banco Mundial faz uma estimativa bem mais modesta: cerca de 5%.