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O primeiro mês de 2016 foi marcado por uma violenta operação policial, movida por particulares, no extremo sul da Bahia, que teve como alvo a aldeia Cahy, na Terra Indígena Comexatibá (Cahy-Pequi), no município de Prado.
Segundo os Pataxó, às 7h do dia 19/1, viaturas das polícias Militar e Federal, máquinas da prefeitura e uma retroescavadeira invadiram a aldeia Cahy, demolindo moradias de 75 famílias, além do posto de saúde e parte da escola. Muitos sequer tiveram tempo de retirar seus pertences e além da ação nessa aldeia, outros dez mandados de reintegração estavam em vias de serem cumpridos.
Situações como essa acontecem há pelo menos 15 anos na região, marcada pela intensa pressão de não indígenas que reivindicam a posse de terras já reconhecidas. Ações policiais sem mandado, interferência de políticos entre outros completam o quadro, que vem alarmando as comunidades Pataxó e Tupinambá.
Logo após a operação na aldeia Cahy, três liminares de reintegração de posse movidas por não indígenas foram suspensas pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), mas a situação ainda é de insegurança. Agora, uma delegação Pataxó se prepara para ir a Brasília na última semana de fevereiro para reivindicar a demarcação de suas terras e o fim da violência contra suas comunidades.
Em manifesto, os Pataxó denunciam a violência da ação policial e afirmam que o mandado de reintegração de posse em nenhum momento lhes foi apresentado, levando a comunidade a acionar o Ministério Público Federal em Teixeira de Freitas (BA) - que declarou desconhecer a operação. Registram ainda que a ação não teria partido oficialmente do Comando Militar de Salvador, mas de uma mobilização de agentes políticos e fazendeiros da região. “Se tal comando é desconhecido pela Secretaria de Segurança Pública, de que comando, então, terá partido esta operação?”, questiona o manifesto pataxó.
Sobreposições e contestações
O relatório de identificação da TI Comexatibá reconhece uma área de 28 mil hectares como território de ocupação tradicional dos Pataxó e identifica a presença de 78 ocupantes não indígenas na área. Desses ocupantes, mais da metade não reside no local ou possui mais de um imóvel.
Para a antropóloga Sheila Brasileiro, do Ministério Público Federal (MPF) - órgão que ajuizou em agosto de 2015 uma ação para acelerar a assinatura da portaria declaratória da terra -, um dos problemas é que o processo de demarcação está judicializado. Segundo ela, desde a publicação do relatório ele já recebeu mais de 170 contestações, sem falar em outras dez ações judiciais movidas por particulares. Comexatibá enfrenta ainda a oposição do setor hoteleiro do distrito de Cumuruxatiba, que ficou fora da área identificada - mas cercado pelos limites da Terra Indígena. Saiba mais.
O projeto de assentamento (PA) Reunidas de Corumbau tem 30% de sua área sobreposta à TI Comexatibá, enquanto o PA Fazenda Cumuruxatiba tem 94%. Segundo a ação civil pública ajuizada pelo MPF, uma das ações (2008.33.00.010077-5) foi movida pelo próprio Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), requerendo uma liminar de reintegração de posse contra os indígenas que vivem na área sobreposta ao PA Fazenda Cumuruxatiba, com 154 famílias de assentados.
O Incra afirma, contudo, que os processos são apenas de “regularização ocupacional” e não têm a ver com o reconhecimento da Terra Indígena: “Caso seja decretada a criação do território indígena Comexatibá, as demarcações que englobam assentamentos passarão a integrá-lo, inclusive se englobar partes onde há lotes com problemas ocupacionais”, informa a assessoria do órgão. Há ainda uma sobreposição de 19% da área identificada com o Parque Nacional do Descobrimento, onde estão as aldeias Alegria Nova e Tibá, situação que tem gerado conflitos e aguarda a assinatura de um termo de gestão compartilhada da área.
Segundo Sheila Brasileiro, a situação de Comexatibá não é uma exceção, já que na região, muitas demarcações de terras permanecem emperradas, com contestações judiciais e administrativas, mesmo com entendimentos acerca de sobreposições. É o caso TI Barra Velha do Monte Paschoal, em que as lideranças Pataxó e a Funai já chegaram a um acordo de gestão compartilhada com o ICMBio e o Parque Nacional do Monte Paschoal, mas ainda não obteve a assinatura da portaria declaratória pelo Ministério da Justiça.
Identificação “mexeu na ferida”
“A gente não vê, por parte do Ministério da Justiça, a tomada de providência para regularizar as Terras Indígenas”, avalia Aruã Pataxó, presidente da Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia, lembrando que além de Comexatibá e Barra Velha, continuam sem portarias declaratórias as Terras Indígenas Tupinambá de Olivença, Tumbalalá e Barra Velha.
Para Aruã, a publicação do relatório circunstanciado da TI Comexatibá foi uma vitória, mas também gerou impactos: “Mexeu na ferida, os fazendeiros se reuniram e aumentou o conflito na região. Não seria diferente, porque, com os grandes produtores de lá, muitas vezes é na base da pistolagem”, avalia. De fato, depois que o relatório foi publicado em julho do ano passado a violência aumentou. No início de setembro de 2015, uma oca na aldeia Cahy foi incendiada por seis homens não identificados e alguns dias depois, lideranças que saíam de uma reunião sofreram uma emboscada.
No final do mês, uma kombi escolar foi incendiada entre Barra do Cahy e o distrito de Cumuruxatiba. "Atacaram a kombi que vinha com os meninos dentro. Todos caíram no mato. E a justiça cadê? A gente luta pela justiça, mas a justiça não atende a gente", denuncia Zé Fragoso, cacique da Aldeia Tibá. Xawã Pataxó, que é filho das lideranças da aldeia Cahy, conta que alguns dias após o ataque em janeiro um homem foi atacado na estrada que liga a comunidade à Cumuruxatiba: “O carro foi cercado por uma Hilux preta com cinco pessoas dentro. Eles atiraram no carro, que capotou”.
O texto do relatório aprovado pela Funai atesta que foram muitos os episódios de expulsão dos Pataxó de sua área de ocupação tradicional, um histórico que remonta ao início do século passado e, segundo o MPF, está relacionado ao processo de apropriação territorial e articulação política do fazendeiro Julio Rodrigues e sua família. Rodrigues adquiriu a área em 1929, transferindo-a para a “Sociedade Comercial Rodrigues” em 1951. Posteriormente a terra da aldeia Cahy passou à família Pompeu de Souza Brasil, autora da liminar que culminou na ação policial nesse janeiro.
No texto da suspensão da liminar, o procurador João Akira Omoto, do MPF, reitera: “O tempo tem mostrado que as decisões judiciais, seja determinando a reintegração de posse, seja suspendendo-as, não são suficientes para amenizar os graves conflitos agrários entre índios e não índios”. O juiz alerta ainda que os contínuos atos de violência podem impactar o direito à educação de mais de 500 alunos indígenas, entre dois e 15 anos, que estudam nas escolas dentro da TI.
Para Xawã, a solução para os conflitos é a demarcação da TI Comexatibá: “Nós resolvemos voltar pra lutar até a homologação da nossa terra. Nós estamos nos sentindo ameaçados, mas estamos confiantes de ficar aqui - mesmo porque o pessoal não tem para onde ir”.