Você está na versão anterior do website do ISA

Atenção

Essa é a versão antiga do site do ISA que ficou no ar até março de 2022. As informações institucionais aqui contidas podem estar desatualizadas. Acesse https://www.socioambiental.org para a versão atual.

Por que julgamento no STF sobre parecer da AGU poder ser nova grande derrota de Bolsonaro?

Julgamento virtual sobre Parecer 001 da AGU começou hoje e vai até a próxima quinta (28/5). Publicada ainda no governo Temer, medida vem sendo usada pela gestão atual para impedir e anular demarcação de Terras Indígenas
Versão para impressão

Edição: Oswaldo Braga de Souza

Começou à meia-noite desta sexta (22) e segue até a próxima quinta (28), no Supremo Tribunal Federal (STF), o julgamento virtual que vai confirmar ou não a decisão do ministro Edson Fachin que suspendeu a validade do Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU). O resultado terá consequências importantes para todos os povos indígenas. Publicado no governo de Michel Temer, o parecer vem sendo usado pela gestão de Jair Bolsonaro para impedir e anular a demarcação de Terras Indígenas (TIs).

Se ocorrer, a manutenção da decisão poderá ser considerada uma nova derrota para os principais defensores do parecer: a bancada ruralista e Jair Bolsonaro, que prometeu não demarcar “nem mais um centímetro” de TIs no país.

Fachin já apresentou seu relatório. O texto retoma sua primeira decisão, apresentada no dia 7/5. Agora, os outros ministros deverão indicar se concordam ou não com o voto. Nesse tipo de julgamento, eles não falam e não são obrigados a divulgar, neste momento, o texto dos votos que sustentam seus posicionamentos.

Entenda o que está em jogo no julgamento

O que é o Parecer 001/2017 da AGU?

O Parecer Normativo 001/2017, publicado pela Advocacia-Geral da União (AGU) em 20 de julho de 2017, determina que toda a administração pública federal adote uma série de restrições à demarcação de TIs. Entre elas, estão as condicionantes da decisão do STF sobre o caso da TI Raposa Serra do Sol (RR), de 2009, e a tese do chamado “marco temporal”, segundo a qual os povos indígenas só teriam direito às terras que estivessem sob sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

Qual a origem do Parecer 001?

O Parecer foi publicado pela AGU no governo de Michel Temer, em meio às negociações do então presidente para evitar que denúncias de corrupção feitas pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra ele fossem aceitas pela Câmara. As negociações envolveram a liberação de emendas parlamentares e também o atendimento à pauta de setores e bancadas, como a ruralista. Dias antes da publicação do parecer, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) publicou em suas redes um vídeo em que o deputado Luís Carlos Heinze (PP-RS) afirmou ter “acertado um parecer vinculante” com os então ministros da Casa Civil, Eliseu Padilha, da Justiça, Osmar Serraglio, e a advogada-geral da União, Grace Mendonça. O vídeo e a publicação do parecer vieram a público pouco antes da votação da primeira denúncia na Câmara, em 2/8/2017. Os deputados negaram a autorização para a investigação e 134 dos 251 votos a favor de Temer vieram dos ruralistas. Desde então, os povos indígenas vêm lutando para barrar a medida, com manifestações, pedidos e reuniões na AGU nas quais expuseram as contradições da medida. Heinze é o deputado que, também em 2014, afirmou em outro vídeo que quilombolas, índios, gays e lésbicas eram “tudo o que não presta”.

Que consequências o Parecer tem para os povos indígenas?

Desde a sua publicação, o parecer vem sendo utilizado para inviabilizar, retardar e até reverter demarcações de terras indígenas, mesmo aquelas em estágio avançado ou já concluídas. Por esse motivo, vem sendo chamado de “Parecer Antidemarcação” ou “Parecer do Genocídio”. A medida é considerada inconstitucional inclusive pelo Ministério Público Federal (MPF).

Em janeiro de 2020, uma reportagem apurou que pelo menos 17 processos de demarcação foram devolvidos pelo Ministério da Justiça para análise da Funai com base na medida. Segundo o MPF, há pelo menos 27 processos que hoje estão sendo revistos baseados nela. Além disso, desde 2019, a Funai também vinha abandonando a defesa de comunidades indígenas em processos judiciais com base na norma, deixando comunidades indígenas à mercê de despejos e da anulação da demarcação de suas terras. O órgão fez isso em, pelo menos, quatro processos: das TIs Nhanderu Marangatu (MS), Palmas (PR), Tekoha Guasu Guavira (PR) e Tupinambá de Olivença (BA). Conforme a legislação, os indígenas devem ser defendidos pela Procuradoria da Funai quando não constituem advogados próprios.

O que é a tese do marco temporal?

O marco temporal pretende restringir o alcance dos direitos constitucionais indígenas à terra. A tese estabelece que os povos indígenas só têm direito aos seus territórios caso comprovem que os ocupavam, estavam requerendo na Justiça sua posse ou que foram expulsos e continuavam em conflito por causa deles até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição de 1988.

A atual versão da tese foi formulada pela primeira vez no voto do ministro-relator Carlos Ayres Britto, no julgamento de 2009 no STF da demarcação da TI Raposa Serra do Sol (RR). O voto de Britto era favorável à homologação da área. Nesse caso, o STF discutiu a teoria do “marco temporal de ocupação” e estabeleceu 19 condicionantes para explicar como a decisão tomada pela Corte deveria ser cumprida.

Por que a tese do marco temporal é tão danosa?

Como os povos indígenas eram tutelados juridicamente pelo Estado até 1988, em muitos casos não conseguiam entrar na Justiça em defesa de suas terras com advogados próprios. Ao mesmo tempo, nem sempre é possível documentar os conflitos pelos territórios indígenas ou sua posse em data específica. Por essas razões, o marco temporal acaba por restringir o reconhecimento da ocupação tradicional indígena da terra.

A tese do marco temporal nega a histórica vulnerabilidade dos indígenas ante as violências que permearam o processo pós-colonial, a abertura das frentes de expansão agropecuária e as violações de direitos na ditadura militar, conforme denunciou o relatório da Comissão Nacional da Verdade. O direito indígena à terra se converte em crime: a ocupação tradicional, respaldada pela Constituição, torna-se invasão de propriedade privada, sujeita a responsabilização criminal e repressão policial.

Embora a decisão sobre a TI Raposa Serra do Sol não tenha efeito vinculante, ou seja, não obrigue juízes ou a administração pública a aplicar o mesmo entendimento, o marco temporal e as condicionantes do caso passaram a ser usados para orientar outras demarcações. Essa estratégia passou a ser usada por juízes de primeira instância para determinar reintegrações de posse ou a anulação de procedimentos demarcatórios. A tese passaria a ser usada pelo Poder Executivo para substituir a Constituição e legislações que normatizam o tema ainda no governo Dilma Rousseff, pela AGU, com a Portaria 303/2012.

O que é o caso de repercussão geral no STF?

Em abril de 2019, o STF reconheceu por unanimidade a “repercussão geral” do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365. O processo trata, no mérito, de uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, da TI Ibirama La-Klãnô (SC). A repercussão geral, entretanto, faz com que esse julgamento extrapole o caso específico e tenha consequências para todos os povos e terras indígenas do Brasil, já que o que fica decidido vincula obrigatoriamente as demais instâncias do Poder Judiciário e a administração pública. Em outras palavras, nesse processo o tribunal definirá qual a sua interpretação do artigo 231 da Constituição Federal, que trata dos direitos dos povos indígenas, inclusive ao reconhecimento de suas terras (mais informações aqui).

Em disputa, basicamente, estão as teses do indigenato, que trata o direito dos povos indígenas à demarcação de suas terras como um “direito originário” que apenas é reconhecido pelo Estado, e a tese do marco temporal, defendida pela bancada ruralista e outros setores econômicos interessados na exploração das TIs.

Qual a participação dos povos indígenas e da sociedade civil no processo?

Em maio de 2019, o povo Xokleng foi admitido como parte no processo de repercussão geral do STF. Esse é um direito previsto no artigo 232 da Constituição Federal e seu reconhecimento ainda é uma luta das comunidades indígenas em todo o país. Em função da tutela a que os povos indígenas estiveram submetidos até a Constituição de 1988, contudo, a maioria dos processos ainda é julgada – muitas vezes com decisões extremamente negativas às comunidades – sem que os povos indígenas participem ou sequer tomem conhecimento das ações. Além dos Xokleng, admitidos como parte do processo porque a ação trata, no mérito, da demarcação de sua terra tradicional, diversos outros povos indígenas e organizações da sociedade civil participam do caso como amicus curiae ou “amigos da corte”, fornecendo informações e subsídios ao julgamento.

Qual a relação entre o Parecer da AGU e o caso de repercussão geral?

O principal argumento da AGU para a publicação do Parecer 001/2017 foi a de que o órgão estava apenas aplicando as definições que o STF já tinha estabelecido acerca da demarcação de terras indígenas. Isso contraria a orientação do próprio STF, que já decidiu, em alguns processos, que essas definições não se aplicam automaticamente a outros casos. A decisão unânime do STF, ao reconhecer a repercussão geral do caso Xokleng, reafirma que os 11 ministros entendem que este assunto ainda carece de definições. O MPF também elenca uma série de decisões que demonstram que as teses assumidas pela AGU estão muito longe de ser uma “jurisprudência consolidada”.

E o que está em jogo agora?

Em março de 2020, os Xokleng e um conjunto de organizações civis que atuam como amici curiae no processo de repercussão geral ingressaram com um pedido de tutela provisória incidental, solicitando ao relator, Edson Fachin, que suspendesse os efeitos do Parecer 001/2017 da AGU sobre todas as terras indígenas do Brasil até que o julgamento do caso fosse concluído. Também pediram que ações de reintegração de posse contra indígenas fossem suspensas em meio à pandemia, para evitar expor povos e comunidades à contaminação por Covid-19.

Em decisão monocrática do dia 6 de maio, Fachin suspendeu todas as ações de reintegração de posse contra indígenas e as que visavam anular demarcações de terras tradicionais. No dia 7 de maio, também suspendeu os efeitos do parecer e determinou que o pleno do STF decida se referenda ou não essa decisão. É essa a importante decisão que será tomada agora pelo STF em plenário virtual, num julgamento que inicia no dia 22 e dura até o dia 28 de maio.

ISA
Imagens: 
Arquivos: 
AnexoTamanho
Ícone de PDF relatório128.65 KB

Comentários

O Instituto Socioambiental (ISA) estimula o debate e a troca de ideias. Os comentários aqui publicados são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião desta instituição. Mensagens consideradas ofensivas serão retiradas.