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Povos Hupd’äh e Yuhupdeh do Alto Rio Negro (AM) discutem educação em seminário

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Comunidades discutem estratégias adequadas à educação escolar indígena que garantam que seus modos próprios de ensino-aprendizagem sejam respeitados, valorizados e incentivados
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A Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e a Fundação Nacional do Índio (Funai), em parceria com o ISA, promoveram, entre 18 e 30/4, encontros de educação escolar indígena que reuniram diversos clãs indígenas Hupd’äh dos interflúvios dos rios Uaupés, Tiquié e Papuri, no Alto Rio Negro, no noroeste do Amazonas.

Participaram dos encontros professores Hupd’äh, Yuhupdeh e Tukano, agentes indígenas de saúde, líderes comunitários, jovens e anciãos das comunidades de Barreira Alta (Rio Tiquié), Santa Cruz do Cabari (Igarapé Japu), Pinu Pinu e Waguiá (Rio Papuri) e Yuhupdeh, na comunidade de Guadalupe (Igarapé Ira).

A discussão, voltada às especificidades dos Hupd’äh e Yuhupdeh, teve o objetivo de promover o debate sobre a educação indígena e a educação escolar indígena e fortalecer os diferentes espaços de produção de saberes, visando construir estratégias culturalmente adequadas a esses povos, de contato recente, em relação à educação escolar e, ao mesmo tempo, garantir que seus modos próprios de ensino-aprendizagem sejam respeitados, valorizados e incentivados.

O seminário contou com a assessoria de Ivo Fontoura, antropólogo e coordenador do departamento de Educação da Foirn, Lirian Monteiro, antropóloga do ISA, Sirlene Bendazzoli, da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados da Funai, Claudia Bandera, da Coordenação Geral de Promoção da Cidadania da Funai e Ana Lima, assistente social do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei).

Os seminários dos Hupd’äh e Yuhupdeh fazem parte do projeto “Seminários de Educação Escolar Indígena”, lançado em janeiro, na Casa do Saber da Foirn, no âmbito da política do Território Etnoeducacional e da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI). O projeto tem como objetivo realizar um diagnóstico ampliado e aprofundado sobre a realidade da educação escolar indígena nas cinco regiões administrativas do Rio Negro, além de promover o intercâmbio de experiências, propor melhorias e inovações de infraestrutura, metodologias de ensino, formação de professores indígenas, elaboração de projetos político-pedagógicos indígenas e, de forma mais ampla, aprofundar a discussão político-filosófica da educação escolar indígena e suas especificidades locais.

Educação indígena

Uma das discussões dos seminários tratou da educação indígena, lembrando que a ideia de escola chegou aos territórios Hupd’äh e Yuhupdeh como projeto de colonização, desconsiderando os diversos tipos de saberes, ciências e filosofias indígenas. Os indígenas observaram que a escola do Estado tirou a criança e o jovem dos ensinamentos dos pais, tios e avós, contribuindo para que os adultos de hoje esquecessem os diversos tipos de danças e de benzimentos, o que continua ocorrendo com os jovens.

Com a ajuda dos velhos, disseram que antes da chegada da escola do branco todos aprendiam o que lhes estava destinado. Ao atribuir um nome à criança, a partir de seu clã, um velho definia o tipo de conhecimento que ela aprenderia ao longo de sua vida, desenvolvendo esses conhecimentos em seu cotidiano com a família. Segundo os Hupd’äh, atualmente os jovens não se interessam mais pelos conhecimentos de seus avós, por isso os velhos não querem mais repassá-los, pois só ensinam se os jovens tiverem interesse em aprender. Como isso não vem acontecendo mais como antes, os velhos morrem e acabam levando todo o conhecimento embora com eles.

Professores e demais lideranças lembraram que, antes da chegada da escola, eles eram bem unidos e comiam todos juntos. Os benzimentos eram repassados nos dias de caxiri e em rodas de ipadu, dia e noite, para que seus filhos aprendessem. Destacaram que já perderam muitos conhecimentos, não possuem mais zarabatana, mas que ainda possuem arco e flecha e diversas técnicas de caça.

Observaram ainda que realizam o ritual do jurupari e dançam também o Karissu, mas se preocupam com seus filhos, que cada vez menos se interessam em participar deles, só valorizando as festas com forró e principalmente a banda “Forroboy”. Contudo, informaram que as crianças, desde pequenas, já aprendem a fazer armadilhas para caçar calangos e, à medida que crescem, aprimoram suas armadilhas de caça.

Escola indígena

Durante o encontro, os Hupd’äh e os Yuhupdeh demonstraram possuir um grande interesse pela escola indígena por considerarem que ela respeita mais os conhecimentos indígenas, também traz os conhecimentos não indígenas e, sobretudo, tenta inserir os professores indígenas de suas próprias comunidades. Eles observaram, no entanto, que a Secretaria Municipal de Educação de São Gabriel da Cachoeira não vem valorizando esse princípio da educação escolar indígena, ao contratar professores de outras comunidades, sem levar em consideração as dificuldades que os pais dos alunos possuem para sustentar um professor de outro local.

Os participantes apresentaram suas experiências de, aproximadamente, nove anos como professores. De acordo com eles, antes as crianças Hupd’äh tinham somente professores de outros grupos étnicos. Como os Hupd’äh possuem experiências recentes na prática de ensino escolar, apontaram como principais dificuldades enfrentadas a não apropriação de metodologias de ensino que promovam a pesquisa e o processo de letramento em língua própria, bem como o ensino na língua portuguesa. Eles deixaram clara a importância de se realizar oficinas pedagógicas para a elaboração de materiais didáticos de qualidade para o trabalho com leitura e escrita em língua hup/yuhup, tukano e português para crianças e jovens.

A importância do letramento das crianças Hupd’äh, primeiramente em sua própria língua, foi bastante ressaltada. Os professores e demais lideranças Hupd’äh solicitaram apoio à Funai para a realização de oficinas pedagógicas que possibilitem a produção de material didático com os professores Hupd’äh. Os mesmos consideraram a importância de se produzir material, analisando que sem textos escritos na língua torna-se muito difícil o trabalho de letramento. Informaram também que não adianta só escrever na lousa, pois as crianças gostam de livros bonitos e com desenhos, assim elas ficam mais animadas em aprender a ler e escrever.

Os professores informaram que já ouviram bastante sobre a proposta da educação escolar indígena durante magistérios indígenas, seminários, encontros, projetos de educação. Sabem que ela é um direito legal, mas que a Secretaria Municipal de Educação não respeita os calendários específicos das comunidades e exigem que se cumpra a carga horária da cidade, alegando ser uma determinação do Ministério da Educação.

Algumas das perguntas apresentadas, a partir das reflexões em trabalhos de grupos, foram como fazer que a escola – no sentido indígena – incentive os conhecimentos que são produzidos em outros espaços, como na roça, em expedições de caça e coletas de frutos, em rodas de ipadu, durante os rituais das flautas sagradas, e como fazer com que os jovens se interessem pelos conhecimentos de seus pais e avós. Para tanto, os participantes destacaram a importância dos 200 dias letivos ao ano – exigidos pela Secretaria Municipal de Educação, mas não exigidos na legislação da Educação Escolar Indígena – contemplarem as atividades cotidianas fora da escola a partir de um calendário específico, construído pela comunidade, visando promover os diversos espaços de saberes em seus territórios. Outra reinvindicação é que o período escolar, que consideram importante para aprender sobre o conhecimento de outros povos, não atrapalhe os processos educacionais propriamente Hupd’äh e Yuhupdeh.

Direitos sociais

Outro tema discutido durante o seminário foi o dos direitos sociais. Como proposta de atividade, foram divididos três grupos de trabalho para realizar o mapeamento de percursos na cidade de São Gabriel da Cachoeira, visando destacar os locais que os Hupd’äh e Yuhupdeh costumam frequentar na cidade, como instituições, comércios, locais de lazer e de estadia. O mapeamento desses espaços foi importante para iniciar um debate, ainda incipiente, sobre os programas sociais do governo e seus impactos no modo de viver desses povos. Programas como o bolsa-família e auxílio-maternidade têm provocado uma crescente ida dos Hupd’äh e Yuhupdeh à cidade, que por sua vez não possui estrutura para atender de forma adequada e eficiente essas comunidades.

Durante os debates dos grupos, a principal queixa dos Hupd’äh, Yuhupdeh e Tukano foi a morosidade do atendimento, na cidade, para aquisição de documentos e os auxílios do governo, o que os fazem perder muito tempo sem que tenham boas condições de estadia. Além desse problema principal, ficam doentes muitas vezes, sem alimentação adequada e expostos aos diversos tipos de violência urbana. Consideraram de grande urgência que São Gabriel da Cachoeira estruture-se para atender bem todos os grupos indígenas, enfatizando que querem ter acesso aos documentos e aos programas do governo sem precisar sofrer por longos meses na cidade e precisam retornar rapidamente à comunidade para dar continuidade aos cuidados com suas roças e casas.

Lirian Monteiro
ISA
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