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Povos indígenas do Rio Negro reivindicam programa diferenciado para agricultura tradicional

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Em entrevista, o líder indígena Carlos Nery cobra a implantação de políticas que respeitem a diversidade dos sistemas de produção indígena e denuncia que as atuais iniciativas governamentais estão colocando em risco um Patrimônio Cultural Brasileiro e a segurança alimentar das comunidades da região
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As comunidades indígenas do Rio Negro, no noroeste do Amazonas, estão lutando para que os programas de compras governamentais da agricultura familiar sejam adaptados aos sistemas agrícolas tradicionais indígenas. Para as lideranças indígenas, o ideal é que fossem criados programas diferenciados para os povos indígenas que valorizassem os produtos das roças tradicionais, seu modo peculiar de produção e seus conhecimentos tradicionais.

No início do mês, o presidente da Associação das Comunidades Indígenas do Médio Rio Negro (ACIMRN), Carlos Nery, divulgou uma carta com a reivindicação em uma reunião do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), em Belém, em uma peregrinação que já dura anos, batendo na porta de órgãos federais e estaduais, sem obter nenhuma resposta que sinalize a solução do problema ou mesmo vontade política de resolvê-lo.

Na entrevista que se segue, Nery denuncia que as iniciativas federais de compras governamentais – o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) – sequer chegaram ao Rio Negro e que as iniciativas semelhantes desenvolvidas pelo governo do Amazonas, ao estimular a monocultura, estão colocando em risco a segurança alimentar das comunidades indígenas e o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, elevado à categoria de Patrimônio Cultural Brasileiro, desde 2010, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) (saiba mais).

Leia abaixo à entrevista


ISA – As políticas do governo federal de compras oficiais da agricultura familiar – o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) – já chegaram ao Rio Negro?

Carlos Nery – As políticas não chegaram lá. Por isso começou nosso questionamento também. A grande dificuldade é a questão burocrática. Em Barcelos, Santa Isabel e São Gabriel da Cachoeira, esses programas só existem no papel. Falta articulação do próprio gestor municipal, das prefeituras. Da merenda escolar, é regulamentado no mínimo 30%. Esses 30% não estão sendo usados como deveriam, com a compra de alimentos da agricultura familiar. Em Santa Isabel, há em torno de 40 escolas e elas estão recebendo alimentos todos de fora do município.

ISA – Qual o problema em relação aos programas estaduais de compras da agricultura familiar?

CR – Há uma grande dificuldade porque as roças tradicionais das famílias indígenas garantem a sustentabilidade das famílias. Elas não produzem para fins comerciais, mas só em pequenas quantidades. Os programas pré-determinam uma quantidade. Essas famílias, muitas vezes, não têm condições de entregar num determinado prazo aquela quantidade [pré-definida].

O valor de pagamento do produto também não compensa, muitas vezes. Ele é muito baixo. Mesmo que os indígenas tenham uma produção excedente, preferem vender para os comerciantes, para outros atravessadores, do que vender para a merenda escolar.

ISA – Por que não adianta adaptar essas políticas aos povos indígenas? Por que avaliam que é preciso criar novas politicas?

CR – Temos um exemplo do próprio governo do estado, que tem um programa pela Afeam, que é a Agência de Fomento do Estado do Amazonas, e financia atividades de agricultura. Só que no estilo de agricultura tradicional, isso não compensa, porque o modo de fazer é diferente. Tem de conhecer a realidade para estar desenvolvendo essa política. Por isso dizemos que pensamos uma nova política adaptada, diferenciada mesmo, específica para as comunidades indígenas.

ISA – Qual seria o impacto de um programa específico voltado às peculiaridades das comunidades indígenas?

CR – O pessoal está saindo das comunidades para os centros urbanos dos municípios. Com isso, estão deixando muita coisa para trás: conhecimentos, plantas, roças, sítios. Estão parando de produzir. Ao invés de produzir, estão passando mais a consumir. Com esse apoio, a aquisição desses produtos das roças, ele vai fazer com que eles voltem a cultivar e tenham sua renda própria. O que dizemos é que tem de haver uma garantia da absorção desses produtos da parte dos programas, sem precisar de financiamento e estipular aquela quantidade de produtos. Estamos discutindo também uma forma de organizar essa agricultura tradicional indígena para atender essa demanda dos programas. Fiquei surpreso porque levantei a questão [na reunião do Consea, em Belém] e a nossa situação não é isolada. Vários outros [representantes de outros] municípios também [disseram o mesmo].

Conseguimos demonstrar que, com as práticas e técnicas tradicionais, sem precisar de financiamento, garante-se a segurança alimentar das famílias, sua autonomia. Com o financiamento, elas passam a ser dependentes, passam a viver em função de pagar esse financiamento. Isso tem endividado um bocado de parentes. Há muitos parentes que acessaram, não conseguiram pagar e hoje estão inadimplentes.

[Na reunião do Consea] também coloquei a experiência e a preocupação nossa com o governo do estado, que quer tornar o Rio Negro o maior produtor de farinha do Amazonas. O governo do estado está pegando os terrenos, de um hectare, para plantio único da maniva [mandioca]. Defendemos que não é preciso fazer o plantio mecanizado da maniva para aumentar a produção. O governo estadual está financiando isso. Para aumentar a produtividade, a produção, estão pegando financiamento, para a compra de calcário para adubar a terra. Batemos de frente, justamente tentando mostrar para o governo. Nossa intenção de dizer isso para fora é porque já tentamos conversar com eles. Não deu muito resultado.

ISA – Qual a resposta?

CR – “Temos um programa: o Amazonas Indígena”. Só o nome usa o “indígena”, mas na prática não funciona. Um programa para dar certo para o indígena tem de ser construído com os indígenas. Esse programa não foi discutido com ninguém. [A resposta] foi que eles continuariam fazendo, porque já estava dentro do projeto. Tivemos uma reunião em 2013. Era outra gestão ainda, do outro governador. Recentemente, não conseguimos mais falar. Optamos por divulgar [o assunto], em âmbito nacional.

ISA – Por que a inadaptação dessas políticas coloca em risco a segurança alimentar e o sistema agrícola tradicional dos povos indígenas do Rio Negro?

CR – O sistema agrícola [indígena] trabalha com produtos diversificados, com variedades de manivas diversificadas dentro da roça. Se as políticas não forem adaptadas e incentivarem apenas o aumento da produção, vamos para a monocultura, e aí acaba toda uma rede de conhecimentos tradicionais, de plantas, de saberes, de fazeres. Porque o sistema agrícola não trata unicamente de alimentação, mas passa pelo conhecimento da terra como um todo, de lugares, de fazer objetos, cestarias, de técnicas de culinária.

ISA – Vocês tentaram falar com representantes do governo federal também?

CR – Tivemos uma reunião no Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), em 2013, se não me falha a memória. Tivemos também uma reunião com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), para mostrar esse “diferente”, e a necessidade de valorizar esse “diferente”, que é um modo de trabalhar a roça tradicional.

ISA – Qual foi a resposta do governo?

CR – Quando não falamos com pessoas que têm poder de decisão, não vai para frente. Acabou em nada, em conversa. O pessoal do MDA e do MDS ficou de fazer uma visita lá na região do Rio Negro. Era o final do primeiro mandato da presidente Dilma. Ficou aquela instabilidade. Disseram: “vamos esperar ainda. Vamos ver como vão acontecer as eleições, se ela vai continuar. Senão, vai mudar tudo.”

ISA – Vocês tentaram novos contatos? Não foram atendidos?

CR – A orientação que nos deram foi de conversar com as representações nos estados, com a delegacia do MDA. Mas não fizemos essa tentativa outras vezes. A conversa também tem sido bem difícil a nível municipal, com as prefeituras. Pode ser que mude.

ISA – Qual o papel da prefeitura nessa história?

CR – Ela acaba definindo o preço [do produto]. A lista de produtos também não vem pronta, como no PAA estadual, onde a lista já vem pré-definida. No federal, a lista é feita pela Conab [Companhia Nacional de Abastecimento], mas, no município, quem define é o prefeito. Ele também pode acrescentar outros. Aí é que está a questão de termos uma política diferenciada. Se ele pode, por que não faz? Se é ele que estabelece o preço da compra municipal, da agricultura familiar... Então, é possível fazer isso.

ISA – Para o momento, vocês querem resolver o problema o mais rápido possível, mas também reivindicando uma política nacional?

CR – Isso. Acho que essa discussão abre outra para os indígenas de todo o Brasil. Estamos falando da nossa região. Não conheço a realidade do Nordeste, do Sul, como são tratadas as políticas públicas lá, se eles acessam ou não acessam... Mas acho que a nossa reivindicação abre um debate mais amplo, no nível do movimento indígena no Brasil. Estamos cientes que o governo federal não vai criar um programa específico para o Rio Negro. Ele tem de ter uma abrangência maior, com foco nacional.

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