Essa é a versão antiga do site do ISA que ficou no ar até março de 2022. As informações institucionais aqui contidas podem estar desatualizadas. Acesse https://www.socioambiental.org para a versão atual.
Reportagem atualizada em 9/11/2017, às 23h27
O ministro Dias Toffoli defendeu o estabelecimento de um “marco temporal” para titulação de quilombos, hoje (9/11), ao dar seu voto no reinício do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.239, proposta pelo DEM, contra o Decreto 4.887/2003, que regulamenta o reconhecimento dessas áreas.
Segundo a tese, só teriam direito aos seus territórios aqueles quilombolas que os ocupavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. O marco desconsidera o histórico de expulsões, violências e violações de direitos sofrido por essas comunidades. Ele já foi usado em algumas decisões sobre Terras Indígenas no STF, mas ainda está longe de ser consenso. Para o movimento quilombola, se prevalecer, a posição de Toffoli vai inviabilizar a grande maioria das titulações.
Após o voto, o ministro Edson Fachin pediu vistas, suspendendo o processo mais uma vez. Não há prazo para a sua retomada.
Em 2012, no início do julgamento, o relator, César Peluzo, que não está mais no tribunal, votou pela inconstitucionalidade do decreto, acatando a ADI. Em 2015, Rosa Weber votou pela constitucionalidade, rejeitando a ação. Depois disso, Toffoli pediu vistas (saiba mais). Por causa da ausência do ministro por motivos médicos, a retomada do caso foi adiada duas vezes este ano. Agora, Toffoli votou pela constitucionalidade, mas acatou parcialmente a ADI, incluindo o tema do “marco temporal” definitivamente no debate. Portanto, o placar está 2 a 1 em defesa do decreto. Outros oito ministros ainda devem votar.
O ministro defendeu que a falta de um "marco temporal" impede que as titulações avancem e que ela provocará “insegurança jurídica” e mais conflitos de terras. “Não é ampliando, numa interpretação extensiva, sem limite temporal futuro, que se vai efetivar esse relevante direito [dos quilombolas à terra]. Pelo contrário, talvez tenha sido exatamente essa tentativa de se ampliar em demasia seu alcance que tenha retardado e tornado mais complexa a demarcação e a titulação definitiva dessas terras”, apontou. Toffoli ressalvou que o “marco temporal” não deve ser aplicado no caso de “ato ilícito” que tenha impedido a posse da terra pelas comunidades.
"Quando estipula uma data certa, a Constituição faz isso de forma explícita. Há inúmeros exemplos disso", contrapõe a advogada do ISA Juliana de Paula Batista.
Toffoli também defendeu que devem ser tituladas apenas aquelas áreas “efetivamente utilizadas” pelos quilombolas, em 5 de outubro de 1988. Na avaliação de especialistas e lideranças do movimento social, trata-se de uma interpretação mais restritiva do direito dessas comunidades, já que a Constituição diz que elas têm direito às áreas que estejam "ocupando". Ou seja, seria necessário comprovar algum tipo de uso efetivo da terra e de seus recursos, e não apenas a "ocupação", conforme a visão do ministro. Além disso, ele não teria estabelecido critérios objetivos para definir o que são áreas "efetivamente utilizadas". O voto desconsideraria ainda as dificuldades das comunidades tradicionais para ter acesso a documentos e instituições que comprovem a posse da terra ou sua expulsão. O conceito de terra “utilizada” não levaria em conta as necessidades da comunidade para sua adequada reprodução física, cultural, social e econômica, como diz o Decreto 4.887.
Na prática, conforme a manifestação do ministro, se grileiros ou pistoleiros tiverem expulsado os quilombolas e eles não conseguirem comprovar a ação dos criminosos, a terra não poderá ser reconhecida. Caso a comunidade tenha sido confinada a uma área menor que o território necessário para plantações, caça, atividades culturais e religiosas, também pela ação de criminosos, por exemplo, igualmente não conseguiria titular o restante de suas terras se não comprovar os ilícitos.
(Saiba mais vídeos nesta reportagem).
“A consequência do voto é restringir o direito quilombola àquela terra que era efetivamente ocupada pelos quilombolas em 5 de outubro de 1988. É exatamente o que querem os ruralistas: limitar os direitos ao mínimo do mínimo”, critica Fernando Prioste, advogado da organização Terra de Direitos.
Ele lembra que muitas ocupações de terceiros sobre os quilombos acabam sendo legalizadas ao longo do tempo, à revelia de suas populações, o que dificulta ainda mais o reconhecimento das áreas. “Como você vai provar um ilícito que aconteceu em 1975, durante a Ditadura Militar, por exemplo, quando a delegacia se recusava a registrar um boletim de ocorrência dos quilombolas? Impossível ou quase impossível. Pouquíssimas comunidades serão capazes de produzir essa prova”, arremata.
“Marco temporal para nós é a pior coisa que existe. A ideia de marco temporal é racista”, resume Oriel Rodrigues Moraes, advogado da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). “A Constituição garante uma reparação histórica a esse povo. E você não consegue acessá-la. O Estado continua agindo de forma racista’, finaliza.
A ironia é que Toffoli fez parte da equipe do governo Lula que elaborou o Decreto 4.887/2003. Na época, ele era assessor jurídico da Casa Civil. A norma é considerada um marco histórico no reconhecimento dos direitos quilombolas.
O ministro considerou como constitucional o critério da "autoatribuição" estabelecido no decreto, pelo qual os próprios quilombolas definem quem faz parte e onde está localizado o quilombo. Ele lembrou que o instrumento está previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil.
"A Convenção 169 da OIT também distingue terra e território. Território é aquele necessário à reprodução física, cultural, social e econômica de uma comunidade tradicional. O voto de Toffoli vai contra essa definição", lembra Juliana de Paula Batista.
Ontem, centenas de quilombolas vindos do Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco e Piauí, reuniram-se no Diretório Negro Estudantil da Universidade de Brasília (UnB), apelidado de "Quilombo", para discutir a ameaça representada pela Adin. Professores e pesquisadores da instituição divulgaram um documento com argumentos antropológicos e jurídicos contrários à ação do DEM.
Anexo | Tamanho |
---|---|
documento | 645.61 KB |